29 de abril de 2010

À mão de ler (10)


«Cinco da manhã. Entrei e sentei-me à espera, atrás do Stone. Dentro daquela camisa vermelha, ele parecia um bocado desanimado.
O Moto estava ao meu lado. Disse-me:
- Apanharam o Matthew ontem.
- Apanharam-no?
- Sim, por ter roubado correspondência. Andava a abrir cartas para o Templo de Nekalayla e a tirar-lhes o dinheiro. Após quinze anos a trabalhar aqui.
- Como é que o apanharam? Como é que descobriram?
- As velhinhas. As velhinhas enviavam cartas cheias de dinheiro para o Nekalayla e não andavam a receber notas de agradecimento nem resposta. O Nekalayla informou os Correios e os Correios puseram-se de olho no Matthew. Deram por ele a abrir as cartas às escondidas e a tirar o dinheiro.
- A sério?
- A sério. Apanharam-no à luz do dia.
Recostei-me.
O Nekalayla tinha construído um grande templo, e pintou-o de um verde horrível, se calhar porque lhe fazia lembrar dinheiro, e tinha uma equipa de trinta ou quarenta pessoas que passavam o dia a abrir envelopes, a tirar cheques e dinheiro, a registar as quantias, o remetente, a data de recepção e por aí fora. Outros ocupavam-se do envio de livros e de panfletos escritos pelo Nekalayla; e havia uma fotografia dele na parede, enorme, com o N. em vestes sacerdotais e de barba, e um quadro do N., também enorme, na parede do escritório, vigilante.
Nekalayla afirmava ter conhecido Jesus Cristo, um dia, quando andava no deserto, e que Jesus Cristo lhe contara tudo. Sentaram-se os dois numa rocha e o J.C. revelou-lhe tudo. Agora, era ele que passava os segredos a todos aqueles que os pudessem pagar. Também tinha uma missa ao domingo. Os seus assistentes, que eram também seus discípulos, entravam e saíam ao som de relógios de ponto.
Imaginem só o Matthew Battles a qurer enganar o Nekalayla que conheceu Cristo no deserto!»
(Charles Bukowski, Correios; trad. Rui Lopes, Antígona, Abril 2010)

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