20 de abril de 2010

Nem sempre a lápis (5)

Lisboa cheirava a castanhas assadas à entrada do metro; na paragem em Carnaxide o ar cheirava a arrepio, só. Aproveitei o pedido do Jaime Bulhosa para repor mais cinco livros – foi rápida, a alergia ao pó – por ter comentado no blogue se ainda havia exemplares como este livreiro: «Sempre fui verdadeiro com os meus clientes em relação ao que pensava dos livros. Nada mais me tem enganado do que a minha sinceridade.» Enganei-me, naturalmente, na estação e saí em Entrecampos. Durante mais de um ano foi o meu transporte (à borla, que me lembre) para o Marquês – chamava-se então Rotunda –, quando vivi num «quarto de estudantes» no Bairro de S. Miguel e tinha o tal emprego nas Amoreiras. Fiz o percurso inverso ao dos ponteiros do relógio, presentes em todo o lado, obsessivos indicadores da tendência publicitária até os utentes «mergulharem no caos doméstico» (Ana de Amsterdam, Ana Cássia Rebelo). Tomei a estação certa, a do Campo Pequeno, a apreciar as montras das lojas fechadas e a fechar, enquanto fumava um cigarro à porta. De nada me valeu o argumento, sincero, de que não sou de cá. «Volte no sábado», sugeriu-me a apagar o cigarro e fechou a porta. Assombrei-me com a imagem dos rebentos de uma figueira, primorosamente podada, à entrada de um prédio de escritórios na Avenida da República. Voltei atrás para confirmar o que não vi lá em baixo; as amendoeiras também já não estavam floridas, só a promessa de uma boa época de nêsperas. Depois senti-me espiado e não observado, até sairmos no Largo do Rato, pelo mesmo acesso. Ter-me-á confundido com alguém, não a reconheci na ala dos meus fantasmas; pensei enquanto subia a Álvares Cabral para me sentar a esta mesa, de madeira, onde jantei e anoto que vou até à Trama; ou não fosse 5.ª feira. Tinha visto um Italo Svevo, Colecção Gabinete de Curiosidades da Teorema, e o tal Tiziano Terzani, adiados a conselho de um adivinho. Esta manhã, enquanto me preparavam o pequeno-almoço e com o ar de quem vai buscar o jornal, comprei O Grito da Preguiça (Sam Savage), para amenizar 2666. Creio não ter gritado outra coisa, esta semana, no silêncio cúmplice do bloco.
[Foto: Nico]

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