22 de maio de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (11)

«No mesmo instante do relato, não só me dei conta de que ela pertencia ao marido, assim como eu tinha pensado demasiado nela; e às vezes, de uma maneira culpável. Então, parecia que era eu quem escondia os pensamentos entre as plantas. Mas desde o momento em que a senhora Margarita começou a falar, senti uma angústia como se o corpo se afundasse numa água que me arrastasse também; os meus pensamentos culpáveis apareceram de uma maneira fugaz e com a ideia de que não havia tempo nem valia a pena pensar neles; e à medida que o relato avançava, a água ia-se apresentando como o espírito de uma religião que nos surpreendesse de formas diferentes, e os pecados, nessa água, tinham outro sentido e o seu significado não tinha tanta importância. O sentimento de uma religião da água era cada vez mais forte. Embora a senhora Margarita e eu fossemos os únicos fiéis de carne e osso, as recordações de água que eu recebia na minha própria vida, nas intermitências do relato, também me pareciam fiéis dessa religião; chegavam com lentidão, como se tivessem empreendido a viagem havia muito tempo e apenas cometido um grande pecado.
De repente dei-me conta de que da minha própria alma me nascia outra nova e que eu seguiria a senhora Margarita não só na água, como também na ideia do seu marido. E quando ela terminou de falar e eu subi a escada de cimento armado, pensei que nos dias em que caía água do céu havia reuniões de fiéis.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

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