12 de maio de 2010

À mão de ler (18)

«O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignominia de se ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana.

A ruína da influência aristocrática, criou uma atmosfera de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde um mediador da forma não tem refúgio. Dói mais, cada vez mais, o contacto da alma com a vida. O esforço é cada vez mais doloroso, porque são cada vez mais odiosas as condições exteriores do esforço. A ruína dos ideais clássicos fez de todos os artistas possíveis, e portanto, maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidadosa das regras - poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou a ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista porque todos têm sentimentos.»
[Bernardo Soares, Livro do Desassossego, Alma Azul, Coimbra / Alcains, 2007]

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