14 de maio de 2010

À mão de ler (19)

«Sabia que de cada vinte e oito páginas publicadas só se lê uma? Porque há livros que são dados de presente a pessoas que não lêem, porque vão parar a uma biblioteca sem utentes, porque se adquirem para decorar estantes, porque se oferecem na compra de outro produto, porque o leitor perde o interesse logo no primeiro capítulo, porque nunca saem do armazém do impressor, porque também os livros se compram por impulso. Eu acabo de me desfazer de O Outono em Madrid, diz Lucio, ia na página sessenta e três; ficaram duzentas e oito por ler. Eu não passei da página vinte, disse ela. Para que um tédio desses chegue a Icamole é necessária a cumplicidade do autor, dos revisores, dos editores, dos impressores, dos livreiros e até dos leitores; isto sem contar com a mulher do escritor que lhe diz sim, meu amor, tu escreves muito bem. Delinquência organizada, diz ele. Olham-se ambos sorridentes por um segundo e Lucio deseja tirar trinta anos de cima de si ou pelo menos que as coisas fossem como em Vidas Ocultas. Leu Vidas Ocultas? Não gostei, diz ela, penso que Miranda devia ter-se ido embora de casa logo da primeira vez que o marido lhe bateu. Lucio fica desiludido por a mulher excluir aquela obra-prima devido a um julgamento moral; podiam certamente sentar-se à mesa a discutir se Miranda mereceria ou não as tareias, mas isso parece-lhe irrelevante. O que interessa é que ela decidiu aceitar os abusos do seu homem e graças a isso houve um romance para escrever, graças a isso houve uma cena gloriosa na qual Miranda se fecha na casa de banho e modela um pénis com o sabonete; coloca-o na púbis e engrossa a voz para dizer: Não posso ignorá-lo duas vezes. Entra no duche e esfrega-se com esse sabonete até ele desaparecer; então começa a chorar sob o jacto de água, rendida, à espera que o marido chegue. Mas Lucio sabe que as mulheres têm dificuldade em ler sem fazer juízos morais, sem se solidarizarem com as suas congéneres. Pensa que Miranda devia ter deixado o marido, diz Lucio, mas não protesta por Babette ter batido àquela porta. Decisão e destino não são a mesma coisa, replica a mulher. Miranda tinha alternativas, Babette, porém, teria caído nas mãos da multidão. Lucio concorda. A Morte de Babette teria falhado como livro se, em vez de sinos e mais sinos, o final tivesse sido o daquela multidão a esfolar a indefesa menina. Não foi apenas Babette que desapareceu para sempre atrás de uma porta, diz Lucio. Aponta a que conduz ao inferno das baratas e explica à mulher a sua finalidade. Deixe-me atirar um livro, diz ela. Lucio saca uma navalha da gaveta e dirige-se para os caixotes, corta cordéis e rasga a fita adesiva. Ela retira um livro, observa a capa, lê as badanas e detém-se na fotografia do autor. Não o conheço, diz ela. Pega num segundo romance: O Filho do Cacique. Este é maravilhoso, leu-o? Lucia abana a cabeça. Também não conhece o terceiro. É há quarta oportunidade que diz: Este deve ir directamente para as trevas, Santa Maria do Circo, um melodrama sobre anões e mulheres barbudas. Há algum ritual ou limita-se a atirá-los pelo buraco? Limito-me a atirá-los. Ela vai até à porta e faz o gesto de atirar o livro; volta-se para Lucio e, ao vê-lo de braços cruzados, com indícios de impaciência, deixa-o cair. De acordo, diz ela, mas falta um letreiro nesta porta. Qualquer coisa que indique a sorte de quem passar por ela. Não sei, Lucio aproxima-se da saída quando ouve o ruído de um motor, o estrépito de um veículo de grande tamanho com a suspensão a ranger, o letreiro só o veria eu e a mim não me faz falta.»
[David Toscana, O Último Leitor; trad. Luísa Diogo e Carlos Torres, Oficina do Livro, Col. Ovelha Negra, Fevereiro 2008]

1 comentário:

Unknown disse...

Sabia que há livros de só se retém uma frase, mas que é o suficiente para nos lembramos do resto da história?
Foi o que me aconteceu quando li: "Há algum ritual ou limita-se a atirá-los pelo buraco? Limito-me a atirá-los."
Afinal, já tinha lido "O Ùltimo Leitor"