12 de maio de 2010

Nem sempre a lápis (24)

Desta vez, não resisti: fiz-lhe uma careta traquina através do vidro martelado com rede metálica, a ver a sombra dele a abrir a porta do prédio; principiava a sumir-se a que terá visto. Nem sempre estou disposto a partilhar o silêncio estreito do elevador, que a presença de outro tornaria embaraçoso; um ou dois andares que fosse. Apercebi-me da «independência urbanizada» quando vivi meia dúzia de anos no campo, aliciado pelo que supunha ser o isolamento onde me permitiria nadar. Erro crasso, verifiquei imediatamente a seguir, infectando-me – ainda que involuntariamente, mas contaminando-me – com a inevitabilidade de saber quem chegava e partia, e a que horas o fazia; era o segurança, o cão de guarda fiel aos hábitos da pouca vizinhança. Pouco, no pior sentido de curto, limitado; rasca e escassa foi a convivência. Resguardado na quietude de um sétimo andar – mas com vista arejada para a colina, confirmo –, retomei o saudável hábito de prestar atenção antes de sair, para não me cruzar com quem chega ou espera pelo elevador para partir. Não posso dizer que não gosto do campo; nele nasci e fui criado, conheço-lhe o veneno dos cheiros com que nos entorpece e o colorido com que nos hipnotiza. Não posso dizer que gostaria de viver em Lisboa, nela me gastei e perdi, conheço-lhe a manha tribal e a sofreguidão antropófaga. Optei, simplesmente, pelo território mediador do subúrbio, onde sobrevivo.

[Iustração: Danae Diaz]

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