18 de maio de 2010

Nem sempre a lápis (27)

Talvez não soubesse, talvez ainda não tivesse assomado a uma certa humildade e continuasse – secretamente, «às escondidas» (Walser) – a brincar com a literatura, como acabo de fazer. Mas, por muito que a fisionomia possa ajudar, não ando cá a jogar ao judeu errante; então que seja ao holandês voador (Wagner). Na realidade, quando há cerca de dez anos me levantei da mesa de um café em Carnaxide, movido pelo impulso que me levou até Tânger e a escrever a primeira versão d’A Cicatriz do Ar, eu não sabia como as palavras de John Berger, que acabara de ler, me marcavam a fogo com a sua simplicidade: «Tras abandonar el hogar [a casa], el emigrante ya nunca más vuelve a encontrar outro lugar en el que se crucen las dos líneas de la vida.» Posteriores deambulações determinaram que «el emigrante» deslocasse esse bloco de textos, Tin ja, para o território natural d’Al Kahïma; ou, como soe dizer-se neste tipo de circunstâncias, pior a ementa do que o sorvete, derretia-me em quilómetros.
Finalmente saído «del hogar» há dois anos, confrontado com «a ausência de pontos permanentes de referência, as linhas horizontais foram substituídas por uma vastidão de distância pura, ao longo do qual tudo permanece arrasado». Dispenso o argumento parvo e estafado de eu «também já não ser o mesmo», deixe-se sossegada a ponte sob a qual correm as águas. Nem o cheiro, nem o sabor, nem o calor, nem a cor, conseguem que se retome o passado interrompido isento de potlatch; optei por ver a linha vertical «dobrar-se formando o círculo biográfico individual que não conduz a lado nenhum, apenas contém.» (John Berger)
[foto: Domingo, 18 de Maio de 2008, a trautear blues]

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