19 de junho de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (15)

«Agora penso que naquela época eu viajava sem recordações: ou melhor, fazia-as; e para fazê-las intervinha nas coisas; mas a minha acção era escassa comparada com a dos meus companheiros; atendia a vida como quem come distraído. Eu era o último a compreender; e frequentemente fingia ter compreendido. Na viagem de comboio que fizemos desde Buenos Aires até Mendoza fiz muito poucas recordações: havia alguns bem mais físicos, como o desassossego com que procurava posições diferentes nos assentos de segunda, feitos de ripas envernizadas que chegavam até a meio das costas; e à noite não sabia onde deixar cair a cabeça, que se bamboleava como um candeeiro quase apagado. As recordações feitas à luz do dia não me deixavam angústia: embora estivesse cansado, as coisas ocorriam como se me entretivesse a fazer solitários ou a olhar gravuras. Recordo a forma dos pães – mais parecidos com tortas –, que algumas mulheres vendiam nas estações; quando começavam a conversar, a voz fazia um pequeno canto que subia e descia graciosas montanhas. Aquela região da Pampa era plana. Passámos por outra onde se levantava um pó tão fino que, apesar de ter fechado as janelas, ficávamos com as sobrancelhas e o cabelo branco. E a última recordação que guardo dessa etapa está cheia de vinhedos que chegavam até ao horizonte.»
[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra / Oficina do Livro]

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