28 de agosto de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (36)

«Em breve farei sessenta anos. Há dois que me persegue a realidade da morte, ao mesmo tempo que me dedico a observar como o mundo vai mal. Como diz um amigo, acabou-se tudo, ou está a acabar-se. Não resta outra coisa além de uma grande massa analfabeta criada deliberadamente pelo Poder, uma espécie de multidão amorfa que nos enterrou a todos numa mediocridade generalizada. Existe um enorme mal-entendido. E uma trágica embrulhada de histórias góticas e editores porcos, culpados de um monumental equívoco. A edição literária, por quem dei a minha vida, já tem o seu funeral preparado em Dublin. E eu já só posso dedicar-me a respirar, a abrir o máximo de espaços possíveis aos dias que me restam, a tratar de ir à procura de uma arte do meu próprio ser, de uma arte que talvez um dia possa aperfeiçoar fazendo o inventário daqueles que foram os meus principais erros como editor. Porque tenho a impressão – num último projecto, apenas imaginário – de que seria vasto que muitos quisessem fazer o mesmo e um livro recolhesse as confissões de editores que dissessem que acreditam que andei a imiscuir-me na sua política de publicações; editores independentes que contassem como imaginaram extraordinários os livros que um dia sonharam trazer à luz do dia; editores que contassem quais foram as suas maiores esperanças e como foi que estas não se materializaram (aí ficaria bem que falasse um editor como o grande Sensini, que só publicava histórias de personagens corajosas e à deriva e que foi processado nos Estados Unidos); editores literários que contassem as misérias da literatura, hoje uma sinfonia completa de corvos perdidos no mafioso centro da selva fúnebre da sua indústria. Para terminar, editores que se atrevessem a publicar o grande mapa das suas decepções, que confessassem nele a verdade e dissessem, de uma vez por todas que, para cúmulo, nenhum encontrou um verdadeiro génio no seu caminho. Um mapa como este, iria permitir-nos avançar dentro das movediças areias da verdade. Gostaria de um dia ter a ousadia de me embrenhar nessas areias e de fazer um inventário sobre tudo o que quis alcançar no meu catálogo e nunca alcancei. Gostaria de um dia ter a honestidade de revelar as grandes sombras que se escondem atrás das luzes do meu trabalho, tão absurdamente elogiado…»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema;

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