18 de agosto de 2010

À mão de ler (73)

«Antigamente, no Natal, havia grandes reuniões na quinta da família. Vindos de toda a parte, os filhos e filhas de Gerrit e Lenie Coetzee convergiam em Voëlfontein, trazendo os respectivos cônjuges e descendência, esta mais numerosa de ano para ano, para semanas de gargalhadas, gracejos e reminiscências e, acima de tudo, comezainas. Para os homens era também uma época de caça: aves e antílopes.
Actualmente, porém, nos anos setenta, estas reuniões de família reduziram-se lamentavelmente. Gerrit Coetzee está sepultado há muito e Lenie arrasta-se num lar do Strand. Dos doze filhos e filhas, o primogénito já se juntos às sombras multitudinárias; em momentos privados...
Sombras multitudinárias?
Parece-lhe demasiado grandiloquente? Eu mudo-o. O primogénito já deixou esta vida. Em momentos privados os sobreviventes têm premonições do seu próprio fim, e estremecem.
Não gosto disso.
Eu risco-o. Não há problema. Já deixou esta vida. Entre os sobreviventes os gracejos foram esmorecendo, as reminiscências foram-se tornando mais tristes, as comezainas mais moderadas. Quanto às caçadas, já não as há: os velhos ossos estão cansados e, em qualquer caso, após anos e anos de seca, não resta nada no veld [savana, estepe] que se possa considerar caça.
Da terceira geração, os filhos e filhas dos filhos e filhas, a maioria está hoje em dia demasiado absorvida pelos seus próprios assuntos para comparecer, ou demasiado indiferente à família mais vasta. Este ano apenas estão presentes quatro da geração: o primo Michiel, que herdou a quinta, o primo John, da Cidade do Cabo, a irmã Carol e ela própria, Margot. E, dos quatro, ela desconfia que só ela recorda os velhos tempos com nostalgia.
Não compreendo. Porque é que me chama ela?
Dos quatro, Margot desconfia que só ela - Margot - recorda com nostalgia... Já viu como soa mal? É que não funciona assim. O ela que eu emprego é como se fosse eu, mas não é eu. Desagrada-lhe assim tanto?
Acho-o confuso. Mas continue.»
[J. M. Coetzee, Verão; trad. J. Teixeira de Aguilar, D. Quixote, Fevereiro 2010]

1 comentário:

Cristina Torrão disse...

Esse Pai Natal é um espanto. Deve ser do stress provocado pela obrigação de visitar todas as criancinhas do mundo numa só noite. Eu, no lugar dele, mudava de vida...

P.S. Gostei muito do texto.