5 de outubro de 2010

Nem sempre a lápis (88)

Sem dar por ela, a consumir livros adiados e a vestir qualquer coisa por cima da t-shirt, Setembro aproximou-se do fim como se, pela primeira vez em muitos anos, tivesse feito férias sem pegar na carrinha; fui uma ou duas vezes a Lisboa, de autocarro. Pude, finalmente, passar as tardes na esplanada ocupado só com as minhas coisas. Quando retomar o trabalho, não faltará a necessidade, não deixará de soar a urgência de ir dar uma volta. Ontem, troquei o lanche com as vizinhas por uma tarde muito social; subi a Duque de Loulé para entregar a revisão de Vantagens Em Viajar de Comboio, nas Edições 70 – as boas memórias, ali na estante, que esta chancela me evoca – e depois, subi a Luciano Cordeiro até à esquina com a rua ofegante da Teorema, para apanhar as fotocópias de Blanco nocturno [Alvo Nocturno] de Piglia. Já ia com Desespero (Nabokov) fisgado, mas, qual não é o meu espanto, quando vi um caixotinho cheio de Um Pai de Filme, a rir-se para mim com a expressão franca de Skármeta. Naveguei um pouco com o Carlos Veiga Ferreira pela Internet, a vila-matearmos, surpreendido por vê-lo em atitude hikikomori; ficámos de nos encontrar na Pó dos Livros. Desta vez, a jornada de Catalunyapresenta era dedicada à tradução de No Último Azul, da maiorquina Carme Riera, apresentada pelo editor; respondeu que o tradutor também iria estar presente. Para mim, Miranda das Neves foi sempre um tradutor; mas lá iremos. Primeiro, deambulei pelo Jardim José Fontana, em busca de um banco para abrir o saco bem municionado; mas tudo o que havia, a abarrotar, era mais um quiosque, interdisciplinar com o Passos Manuel. Como o peso do saco me cortava a mão, decidi ir conhecer a Almedina, em edição lisboeta. Cabisbaixo, confesso, pelo passeio bunkerizado do Mercado do Saldanha; já lá vai o tempo das cabeças de peixe com feijão verde, das galinhas degoladas para a cabidela. O Pedro Vieira não oficiava na catedral, mas precisei de focar duas vezes para confirmar que me sorria o Nuno Moura; e não era cliente. Fomos até ao gueto de fumadores no exterior, comentar (interessantes) planos vindouros e confirmar as vantagens do segregacionismo; fornece um desfile muito criativo de coristas, sob o meu ponto de vista. Despedimo-nos e não há vez nenhuma que atravesse o Saldanha e não me lembre do tempo em que o João César Monteiro plantava ovos aos pés da estátua; era voz corrente no Monte Carlo, um saco de tarecos e bichanas, das melhores procedências. Segui, exageradamente, a Avenida da República e, como um mal centenário nunca vem só, entrei ainda pior na 5 de Outubro; a igreja de Nossa Senhora de Fátima fitava-me, ao fundo, com a meiga expressão português suave. Num ameno recanto do passeio, obstruído pela esquina de um prédio com uma loja de artigos de culto à vista desarmada, um puto acabava de acender um charro de uma qualidade que me levou a esticar o polegar, embora sem me deter; tive receio de ser mal interpretado. Refreei a compulsão para a compra de livros, num corredor entalado entre o balcão e a montra; mandei vir um descafezado e um rissol marmóreo, ruminado a folhear e a eliminar as páginas em branco e as desnecessárias para a tradução. Na Pó dos Livros correu como de costume; o Outono convida a assistência, e quando perguntei ao Carlos pelo tradutor, indicou-me a Umbelina, com a cabeça. Já nos encontrámos uma série de vezes, desde o Seminário de Tradução de Língua Catalã, há dois anos no Instinto Camões; mais uma oportunidade para verificar a minha natural tendência para dar como adquirida, a primeira coisa que me vem à cabeça.
Retomada a memória devassada até ao Marquês, esperava pelo autocarro e levei a mão ao saco para anotar este período de McCarthy no bloco que o Carlos me ofereceu: «Nas árvores havia maçãs verdes do tamanho da unha do polegar, de um verde reluzente e fogoso, um verde fatal como o abdómen das varejeiras.» Mais tarde, quando abri o bloco em casa, reparei na marca: Teorema. «Tome lá para os seus apontamentos de tradução», apetrechou-me discretamente.

[O catalão é muito bonito; para mim, tem uma sonoridade familiar ancestral.]

Sem comentários: