24 de novembro de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (53)

«O secretário Schultz manifestava-se inclinado em depositar a sua confiança no segundo ensinamento, a tradição das «minorias convencidas», um núcleo de activistas decididos e formados, capazes de resistirem à perseguição e unidos entre si por uma substância proibida – imaginária ou não – feita de alusões secretas, de palavras herméticas, oposta ao populismo campesino, que fala crioulo com as máximas conservadoras da chamada sabedoria popular. Drogam-se todos, nestas terras do campo, aqui, na pampa da província de Buenos Aires ou nos campos de pastoreio ou de cultivo da Palestina. É impossível sobreviver de outro modo nesta intempérie, disse o seminarista, segundo Luca, e acrescentou que o sabia porque eram verdades aprendidas na confissão, com o tempo, todos confessavam que no campo não se podia viver sem consumir uma poção mágica: cogumelos, cânfora destilada, rapé, cannabis, cocaína, mate curado com genebra, yagué, xarope com codeína, seconal, ópio, chá de urtigas, láudano, éter, heroína, mistura de tabaco preto com erva-do-diabo, o que se pudesse conseguir nas províncias. Ou como se explica o poema gaúcho, La Refalosa, os diálogos de Chano e Contreras, Anastasio o Frango? Todos esses gaúchos passados da cabeça, a falar em verso rimado pela pampa… En su ley está él de arriba si hace lo que le aproveche. / Siempre es dañosa la sombra del árbole que tiene leche*. É para isso que servem os farmacêuticos da terra, com as suas receitas e as suas mezinhas. Ou não eram os boticários as figuras chave da vida rural? Uma espécie de consultores gerais de todas as maleitas, sempre dispostos, à noite, pelos saguões, a traficar leite das árvores e produtos proibidos.
Tinha-se entendido imediatamente com o seminarista, porque Luca pensava na reconversão da fábrica como se fosse uma igreja em ruínas que necessitava de ser fundada novamente. De facto, a fábrica tinha nascido a partir de um pequeno grupo (o meu irmão Lucio, o meu avô Bruno e nós) e nesses pequenos grupos há sempre um que rói da corda, que vende a alma ao diabo, e foi isso o que tinha sucedido ao seu irmão mais velho, o filho Varão, o Urso, Lucio, seu meio-irmão, para dizer a verdade.
- O meu irmão vendeu a alma ao diabo, influenciado pelo meu pai, pactuou, vendeu as suas acções aos investidores e nós perdemos o controlo da empresa. Fê-lo de boa-fé, que é como se justificam todos os delitos.
* "Está no seu direito o mais acima de fazer o que lhe aproveite. / É sempre má a sombra da árvore que dá leite."
[Ricardo Piglia, Alvo Nocturno; traduzido e em revisão para a Teorema;

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