20 de janeiro de 2011

Papiro do dia (25)

«No dia seguinte, quando olhou para a carta, ainda no mesmo sítio, embora já ligeiramente mexida – uns milímetros talvez mais para dentro do armário –, fixou-a de uma maneira completamente diferente. Agora, Lenz não estava desatento, não estava embrenhado em quaisquer raciocínios interiores ou desviado para preocupações futuras. Lenz olhou para a carta, viu-a com nitidez e pensou nela.
O que queria aquela mulher? Por que o tinha escolhido a ele para levar a carta ao correio?
Ele era médico. Saberia essa mulher que nos afazeres e nos deveres mais extensos de um médico não estaria certamente a função de carteiro? Quem se considerava ela? Os moribundos exigiam tudo dos outros, parecendo novos reis, uma espécie de monarquia intempestiva instalada não pela força absoluta, espada ou genes, mas pela qualidade oposta: a fraqueza. Os actos de compaixão não poderiam instalar monarquias ou novos reinos, pensava Lenz, senão a cidade em pouco tempo seria devorada. A natureza está à espera, lá fora, mas mantém exactamente a mesma força: recuou, é certo, mas não está sequer prisioneira. Está num outro sítio, num outro ponto da batalha, e afia as lâminas; não reza, não suplica, não pede piedade.
Não reza, afia as lâminas.»
[Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Técnica; Caminho, Outubro 2007;

2 comentários:

Cristina Torrão disse...

Genial.
E arrasador.
Quem é que, depois de ler isto, ainda tem ânimo para continuar a escrever? Ai, ai...

fallorca disse...

Não é por acaso, não, nem do marketing :)