6 de fevereiro de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (68)

«Os olhos passavam pelas colunas do jornal, subiam e desciam, outra página.
- Acordei e não sabia onde estava. Na rua, tive de perguntar… Voz de atrasado mental:
- «Onde estou? Que rua é esta? Que bairro?» Imagina tu, em Barcelona. Só me faltava dizer que tinha o disco voador na esquina…
Voz metálica, extra-terrestre:
- «Que planeta ser este?» Foi por isso que me atrasei, não foi por mais nada. Olha! Apareces no jornal! A sério! «O censo de Barcelona é de 1.655.420 habitantes…» É uma brincadeira…
Mais páginas. Leve movimento dos olhos. Olhar em frente. Sorriso. Subtil indicação com o dedo a solicitar atenção, confidencialidade. Ignacio aproximou a cabeça. Carlos diminuiu o estrondo da sua voz e converteu a lixa do seu timbre num rumor eclesiástico.
- A Verónica leva uma bela vida. O travesti… Trabalha aqui, no Bagdad, um número muito fino. A mãe anda sempre por perto, de bar em bar, tem o lábio rachado. Um chulo, há uns anos. E calças aos quadrados.
Uma voz de anciã com trejeitos de marquesa:
- «A minha filha trabalha nas varietésVarietés, diz ela. Vende tabaco…
E um grito de estivador:
- Verónica, acorda!
De repente, o silêncio.
Os olhos de Carlos aproximaram-se do jornal aberto, com paixão e esquecido do mundo, como se fosse beijá-lo. Ignacio observou os movimentos atabalhoados de uma Verónica sobressaltada. Uma hora antes, quando se sentou na esplanada, esteve a olhá-la pelo canto do olho até se confrontar com um inusitado número de calçado e a perturbadora realidade; permitiu que as suas sobrancelhas viajassem até o mais alto da testa e fixou a vista num ponto qualquer do outro lado da avenida, que nesse momento não estivesse a apontar para ele e a rir-se a esfregar a barriga. Foi então que descobriu que o Paralelo era a rua dos últimos sonhos da noite.
- Já está!
Carlos fechou o jornal e atirou-o para cima da mesa.
- Os cegos, nem me viram. Tinha cá uma fezada, e é como vês. Disse-te que tinha de fazer uns recados? Vens comigo? Depois vamos comer a um sítio porreiro. Barato, mas porreiro.»
[Francisco Casavella, Um anão espanhol suicida-se em Las Vegas; em revisão para a Minotauro;

Sem comentários: