24 de março de 2011

Papiro do dia (45)

«Claro, muitas vezes pergunto por quanto tempo uma pessoa continua até… Deve haver certamente, algures, um limite que se torna cada vez mais claro aos nossos olhos, que depois se alcança, como se alcança o sono cinzento, e daí em direcção ao sonho cinzento no qual, como numa pequena morte, se encontra o bem e o mal, par inseparável, os gémeos que desafiam a morte. Os meus sonhos satisfazem-me e ajudam-me a matar o tempo. Já não me importo de não poder dispor livremente do tempo, de o acumular e, de preferência, de o esquecer; agora percebo que dormir e acordar não se rejeitam mutuamente, mas que são extensões um do outro e fluem um no outro, enriquecem-se mutuamente, complementam-se, um torna suportável o outro, e que o meu baobá é um sonho concretizado, e quando vejo os pequenos homens sei que são figuras sonhadas que caçam realmente, que realmente me abastecem de comida, que me vêem de facto, mas ao mesmo tempo não me vêem porque eu existo no sonho deles, e que alimentam o seu sonho cuidando de mim. Seguimos os nossos caminhos separadamente e dependemos um do outro, eles de mim, visto que eu sou como sou, e eu deles, dado que eles agem como agem. Hoje rio-me tristemente das minhas intermitentes tentativas para usar as pérolas pretas e verdes que apanhei para medir o que é tão ridículo medir e registar. Atribuo isso à minha educação, feita sem orientação, mas apesar de tudo educação, em que contar, dividir e classificar tinham um papel muito importante para aconselhar as pessoas a empreender uma viagem que deveria progredir desta e daquela maneira, ter este e aquele resultado e, portanto, por esta e aquela razão deviam organizar-se desta maneira e não de outra, nesta época do ano e não noutra, nesta direcção e não noutra, com este equipamento e não com outro – todos os detalhes eram tidos em conta, e quando chegava o dia da nossa partida com a preguiça do fim do Verão, assim que o dia deslizava no reino da noite, e nos esquecíamos da sonolência e dos bocejos quando, pela última vez, e por hábito, olhávamos para o mar e víamos as naus e os esquifes balouçarem, o céu começar a arder com cores de fogo sobre as kudu-berry, nenhum de nós se apercebia que estávamos a entrar num sonho. As aventuras do sono são pérfidas.
Hoje tenho os nomes para tudo: escrava, castração, comércio, cidade costeira, mar, trabalho forçado. Sim, agora tenho-os todos. Tenho os nomes e ninguém me ouve. Nada posso fazer com os nomes. Nada mais são do que chocalhos.»
[Wilma Stockenström, Viagem ao Baobá; trad. Fernando Luís Sampaio, Assírio & Alvim, col. Outros Lugares, Lisboa 2006]

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