20 de junho de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (91)

«Quando pensei numa literatura de percepção, não pensei de modo algum numa literatura profética, que é uma coisa muito diferente e sem dúvida nada interessante. O que flui pelo romance de Gracq é um estranho rosário de iluminações de estirpe rimbaudeana, qualquer coisa como uma grande sabedoria de percepção do futuro, na linha de um Kafka, por exemplo. Como é sabido, um dos aspectos mais sedutores da literatura encontra-se no facto de, algumas vezes, poder ser como que um espelho que se adianta; em espelho que, como alguns relógios, tem a capacidade de se adiantar.
Kafka foi um bom exemplo disto, porque teve a percepção para onde iria evoluir a distância entre Estado e indivíduo, singularidade e colectividade, massa e ser cidadão. Kafka viu a perspectiva para lá da evolução. Isso explica que gostasse tanto de outro livro com vincada tónica perceptiva, Bouvard e Pécuchet, onde há um magnífico diagnóstico sobre como a estupidez avançará imparável no mundo ocidental. O livro de Gracq situa-se nessa corrente de escritores com espelhos que têm a capacidade de se adiantar. Parece conhecer o núcleo do nosso problema actual: a situação de absoluta impossibilidade, de impotência do indivíduo frente à máquina devastadora do poder, do sistema político.
Até ao século XIX, o grande político e o grande escritor podiam convergir numa similaridade solidária de linguagens. O romance do séc. XIX retratava o mundo com as mesmas categorias que presidiam o trabalho do político que construía o mundo. A literatura podia ser central, colocar-se no centro do porvir histórico. No século XX, essa solidariedade quebrou-se. O político e o escritor, a história e a poesia, começaram a falar duas linguagens diferentes e incompatíveis. Os seus mundos começaram a não coincidir um com o outro. Flaubert, primeiro e Kafka, depois, foram os mestres desta subtil, decisiva inversão. Robert Musil foi talvez o último deste brilhante elo, encerrando-o com a sua monumental obra aberta, O Homem Sem Qualidades, onde apresentava um novo modo de narrar que se constituía num permanente ensaio sobre a vida. A sua obra encerrou todo um ciclo da narrativa europeia, e para alguns foi o último dos nossos romancistas, pois terminada a Segunda Guerra Mundial, já não ficou nada de narrável no continente: passar-se, já se tinha passado tudo, e precisamente porque já se tinha passado tudo, já não ficou nada que se passasse e passámos a viver no nada.»

[Enrique Vila-Matas, Perder Teorias; traduzido para a Teodolito.]

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