22 de junho de 2011

Papiro do dia (89)

«Era costume de George Abbot sair ao fim da tarde com um livro, normalmente francês, já que ele gostava, mesmo aqui onde não tinha nenhuma oportunidade de a praticar, de se exercitar no domínio daquela língua. O pequeno volume no bolso dele, com a sua capa onde o título estava suspenso de uns anjinhos, representava uma fuga à própria natureza dele e às humilhações e mesquinhas insuficiências da sua existência de mestre-escola, mas o que era mais importante é que, ao fazê-lo usar os talentos devidos, lhe mantinha acesa a esperança num futuro melhor.
Tinha vários retiros favoritos. Ali, com o livro em cima do joelho e as botas sobre o pó, sentava-se – sempre atento às formigas – entre o odor apimentado e o monótono fulgor de uma tarde tropical; mas a sua cabeça estaria num lugar inteiramente diferente (chamemos-lhe Paris), onde as palavras com que a alma dele bailava, sensibilité, coeur, paradis, o aliviavam do seu peso de urso e das suas botas coloniais, e a toda a volta, o mato, quando a palavra paysage o acendia, assumia cores novas mas familiares, e depois abria-se em avenidas, ao fundo das quais, entre as folhas que caíam, refulgia um templo com colunatas, onde as cruéis necessidades que o assaltavam se desvaneciam logo que ali penetrava em companhia de uma heroína, exigente mas ao mesmo tempo subtilmente condescendente, com os mais delicados punhos, e um delicioso e angélico lábio superior de quem tudo sabe, cujo nome era Úrsula, ou Vitorina.»

[David Malouf, Recordando a Babilónia; trad. Jorge Pereirinha Pires, Assírio & Alvim, 2009]

Sem comentários: