30 de junho de 2011

Papiro do dia (93)

«Acordo das travessias que fiz pelas paisagens de Guimarães Rosa num hotel em que as instalações que ocupo, metade de um bangalô que com a sua outra metade, independente e com um número diferente na porta, constitui uma das para aí vinte ou trinta casinhas dispostas em semicírculo num vasto parque com tudo o que um hotel destes deve garantir de salutar, despojado e vigoroso conforto, e em tudo semelhante a centenas deles que há pela África turística e cinegética fora, inclusive um cercado com emas, que são parentes de avestruzes e há quem não dê pela diferença. Não fossem os buritizais que vejo de uma das janelas, numa vereda a que este espaço encosta, crer-me-ia em plena Namíbia ou na África do Sul, e vou ter dificuldade, desde que fumo o primeiro cigarro e pela manhã fora, em sacudir questões que eram as que trazia comigo quando cheguei ao Brasil. Estive na Cidade do Cabo pouco antes de ter rumado para aqui, e saí de lá com uma mão cheia de coisas novas a decifrar.
Coisas cá minhas, por um lado, Áfricas imaginárias, sempre, quer por quem se propõe falar em nome de África ou se assume como a própria voz dela, quer por quem resolve a vida a ocupar-se e a falar dela ou daquilo que na sua imaginação ela passa a ser, ou quer ou lhe convém que seja, e assim já chega e vale muito mais, até, nos mercados e nas arenas a que destina aquilo que produz. Não me sai da cabeça que os primeiros europeus que se expandiram em África, de norte para sul, a partir do rio Congo, admitiram a existência de um misterioso reino de pastores para lá da latitude de Benguela, enquanto os que mais tarde se expandiram de sul para norte, a partir da colónia flamenga do Cabo, conceberam igualmente a existência de um misterioso reino de pastores longilíneos e de cabelos escorridos muito para além dos assentamentos hotentotes que havia a norte do rio Orange. Acabou por ser nesse espaço, comum às duas suposições e onde aliás jamais existiu reino algum de pastores assim, que quase em exclusivo investi o que tenho andado a viver e a procurar saber de há quinze anos a esta parte.»

[Ruy Duarte de Carvalho, Desmedida crónicas do Brasil, BI. 033, Fevereiro 2008;

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