10 de julho de 2011

Nem sempre a lápis (186)

Fui à Cromotipo com o editor autenticar as provas do livro; a medida acertada para calarmos o «depois não digam». O Miguel Martins foi à vida dele e entrei num restaurante na Passos Manuel, surpreendido por ver anunciado, entre especialidades árabes, carvão e misturas de tabaco para cachimbo de água: «Há shisha», li tudo seguido. Cumprimentei o paquistanês e o egípcio, soube depois, e desci as escadas para entrar num cenário de mil e um pesadelos adolescentes, espalhados pelos tapetes e pufes e almofadas e mesas baixas. Não cheguei à Índia, nem me aproximei do Cairo; bebi um tea mint com bonomia de figurante em reserva natural, a enrolar um charro muito apreciado, à distância. Saí indeciso quanto ao lado do corpo a expor ao semáforo amarelo da tarde, extensivo a vários distritos ultra-violeta. Visto-me por intuição; optei pelo metro mais perto na Almirante Reis. Foi naquela mesa da Portugália, encostada à vidraça da fermentação, que escrevi um cut-up, na toalha; parei e conferi o plano com a Ourivesaria. Ajeitei-me no Elevador da Glória, sem stress de jornalista em fecho de página, a decifrar afazeres, origens, a alegria estampada nas câmaras e máquinas e telemóveis, e nos rostos também, no momento em que os elevadores se cruzaram. Lisboa está cada vez mais linda; para quem lá não vive. Na segunda-feira, contraí uma leitura incurável: Ruy Duarte de Carvalho. Tenho de pedir à Nico para mandar Fui Lá Visitar Pastores e Os Papéis do Inglês, que não li, contrariar a ligeireza com que duplico títulos. Apanhei o livro e encaminhei-me para a brisa, de folga, no Café no Chiado. Enquanto esperava, espero, embrenhei-me pel’As Paisagens Propícias. E à medida que lia e fazia pausas para beber água, enrolar um cigarro, ver passar o 28, foi crescendo em mim uma vergonha indescritível; pelos vexames a Saramago, pelo autismo onde exilaram Duarte de Carvalho. Jantei uns filetes no Tagarro, servidos com a intimidade do Diário de Lisboa; tiragem abandonada. Tive o cuidado de não ocupar o banco da Luiza e do Manuel João; sentei-me nos degraus, repugnantes, do plinto do Camões a ver uma nesga de rio, à espera. Gosto de livrarias portas abertas pela noite fora e malta a ler; os poetas não se misturam, dão recitais. Enquanto esperava por um voo rasante na esplanada da Benard, os Armazéns do Chiado começaram a legendar a guarnição de pinheiros mansos no Castelo. Depois, nem isso; Lisboa foi tomada ao dia.

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