14 de julho de 2011

Papiro do dia (100)

«Não lhe passou despercebida a forma como a mãe de Babette evita aproximar-se dele. Sim, os livros criam uma aliança entre nós, porém esta dissolve-se por outros factores; um banho ajudará a reduzir a distância. Poderemos sentar-nos juntos a ler As Tardes de Rebeca, com o livro apoiado metade no seu regaço, metade no meu. Lucio conduz o homem da mangueira até às traseiras da sua biblioteca e mostra-lhe o tonel. Encha-o, diz, às vezes uma pessoa tem de se lavar. O homem não diz nada; deita a água, fecha a torneira e começa a enrolar a mangueira. Há alguma novidade?, pergunta Lucio. Depois de uns instantes sem resposta, insiste: Continuaremos a vê-lo por aqui? O homem anui. Voltarei enquanto não chover, diz, entra no veículo e avança para a propriedade seguinte. Lucio molha a cara e o pescoço e entra na biblioteca. Precisa de um bom livro para passar a tarde, de preferência um que seja sobre as aventuras de um viajante ou sobre o rapaz que quer ser futebolista; um desses romances em que a morte seja algo remoto. Tira um livro ao acaso do caixote que tinha aberto para a mulher: Amargura. Basta-lhe ver na capa uma rapariga com um uniforme escolar para imaginar o conteúdo. Outro, diz para si, outro escritor que acaba a dar aulas numa qualquer universidade gringa e depois dá-lhe para relatar os seus namoros com as alunas. Em que pode esta história ser diferente? No facto de a rapariga se chamar Evelyn e o professo não ser de literatura mas de sociologia? De certeza que o homem tinha uma vida metódica até Evelyn aparecer no seu gabinete de saia curta para lhe fazer umas perguntas. A partir desse momento virá a mistura de culpa e delírios, longos parágrafos na primeira pessoa para justificar o comportamento do professor e obrigar assim o leitor a solidarizar-se com ele; sim ela tem o mundo à sua frente e ele uma família a sustentar, mas é um bom homem, ama-a com sinceridade, e ninguém tem o direito de se meter na sua vida privada ou de pôr em dúvida o seu talento nas aulas. Por isso é injusto que o tratem como se fosse um criminoso, como se não reparassem que é ele a vítima, porque mais tarde ou mais cedo, perante a insistência dos pais, Evelyn acabará por deixá-lo, e ele compreenderá que deu cabo do seu casamento e da sua carreira em troca de uma recordação para a velhice. Prepara-se para arremessar o livro para o inferno quando lhe vem à cabeça que deve ler a contracapa; talvez seja uma coisa original; talvez o autor desse aulas numa universidade latino-americana e então podia dar umas cambalhotas com qualquer aluna sem reparos morais ou profissionais. Não é o caso, as palavras do editor falam das pressões sociais que se impõem ao amor; de como até os amigos mais próximos se transformam numa inquisição face à ruptura com a forma habitual de viver. Senhor comendador, diz Lucio em voz alta, o que fazemos com este livro? Envia-o para a fogueira, responde a si próprio, e assim faz, e de uma só vez são condenadas setenta mil palavras.»

[David Toscana, O Último Leitor; trad. Luísa Diogo e Carlos Torres, Oficina do Livro / Col. Ovelha Negra, Fevereiro 2008]

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