12 de julho de 2011

Papiro do dia (99)

«Nunca se encomendou a um carpinteiro a construção de bancos para a capela, e cada um dos fiéis, sobretudo as mulheres, habituou-se a levar a sua própria cadeira para as cerimónias, quer se tratasse de rezar o terço, de uma oração pela chuva ou da festa do padroeiro, na qual convidavam o padre de alguma aldeia vizinha para celebrar missa, a única do ano. A preguiça de levar as cadeiras outra vez para casa fez com que fossem ficando na capela; por isso se vê um mobiliário tão desigual: cadeiras de madeira, metálicas, de plástico ou vime, dobráveis, rígidas, almofadadas, de diversas cores ou descoradas. Quanto aos ícones religiosos, a capela também revela austeridade. Da parede direita prende a capa de Coplas Guadalupanas, o livro de Héctor Lanzagorta que uma beata furtou da secretária da sua biblioteca quando o visitou para lhe solicitar um donativo para a restauração da capela. Lucio não tentou recuperá-lo, pois o carimbo da censura estava destinado às Coplas e alegrava-se por ninguém se ter dado ao trabalho de o ler apercebendo-se de que se tratava de um livro sacrílego, coisa que a própria capa anuncia subtilmente, pois a figura de Juan Diego a adorar a Virgem revela uma protuberância entre as pernas. Na parede da esquerda, em cima de uma prateleira, junto a três velas apagadas e uma acesa, jaz o frasco de vidro com a carta do soldado Pedro Montes. Trata-se de um cilindro de vidro que não se estreita à altura da tampa; de facto, esta ultrapassa em pouco o tamanho da base. Lucio e Remigio caminham para lá. Sempre pensei que originariamente o frasco tinha pêssegos em calda, diz Lucio. O papel está colado ao vidro que funciona como uma montra, de tal modo que a carta dirigida a Evangelina pode ler-se do princípio ao fim. Uma vez tentei tirar a tampa, diz Lucio, mas foi impossível. Quero abri-la porque Pedro Montes escreveu fé sem acento e durante todos estes anos ninguém reparou nisso. Já é altura de corrigir o erro, diz e tira do bolso um marcador encarnado. Não contes com a minha ajuda, Remigio dá um passo atrás, é a relíquia mais querida de Icamole, não tens o direito de fazer isso. Lucio abana a cabeça, senta-se numa cadeira e toca na que está ao lado. É muito mais cómoda do que a da tua mãe. Remigio respira fundo e vai até lá. Não consegue lembrar-se da mãe sentada naquela cadeira ou em qualquer outro sítio. Quando pensa nela, é uma mulher em pé, de costas. Lucio fecha os olhos e fala sem emoção. Se tu fosses um romancista gringo, este seria o teu ponto de partida: o dia em que o meu pai quis induzir-me a praticar um acto pouco limpo; e terias páginas suficientes para seres cínico a meu respeito, para me exibir perante todos os teus leitores como um pobre-diabo, que apesar de tudo amas, porque tu, sim, és um homem bom. Remigio ergue-se e, submisso, enfia as mãos nos bolsos.»

[David Toscana, O Último Leitor; trad. Luísa Diogo e Carlos Torres, Oficina do Livro / Col. Ovelha Negra, Fevereiro 2008]

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