2 de novembro de 2011

Papiro do dia (143)

«Estava tudo muito sossegado, exceptuando o barulho do aquecedor a gás, e fazia muito calor. O chá escaldava, mas bebi-o tão depressa quanto pude. Sentia-me ansiosa para sair dali, mas constrangia-me qualquer antiga delicadeza, como se fosse outra vez criança e tivesse obrigação de me portar bem. O Dr. Simek pegou um torrão de açúcar, com os dentes um pouco trémulos, meteu-o entre os dentes, fortes e velhos, e bebeu um gole de chá. O gesto, repetido várias vezes, fê-lo parecer incrivelmente estrangeiro, e recordou-me, talvez pela maneira como o lábio se lhe ergueu, que tinha sido um homem vigoroso e – pela forma como a senhoria o tratava – importante. Não tinha nada o ar de quem se desculpava, pelas suas instalações ou pelo roupão, e eu senti-me jovem e um pouco desajeitada. Procurando algo para dizer, observei o quarto e os meus olhos depararam com a fotografia de uma mulher muito bonita, em cima da cómoda.
- É a sua mulher? – indaguei, consciente de que se tratava de uma pergunta indelicada.
- A minha filha – replicou. – A Zdenka.
- É muito bonita – comentei.
- Sim – concordou. – Era bonita. – E os dedos tremeram-lhe um pouco mais, e o copo de chá foi levantado e esvaziado, e de novo pousado. Então outro cigarro foi metido na boquilha, tornando-se bastante claro que estava preparado para a minha retirada.
Levantei-me, porque, de repente, aquilo se me tornara intolerável, e estendi-lhe a mão. Pousou o cigarro ao lado e tentou levantar-se, mas o esforço foi demasiado. A cara mostrou-se abatida, ao cair para trás, e aproximei-me para o ajudar, mas, com um grande e inesperado vigor, o Dr. Simek fez força nos braços e levantou-se. Manteve o equilíbrio pousando a mão no encosto da poltrona, tornou a pegar na boquilha, compôs o rosto numa expressão de bom humor mundano, adequado a quem permite que outro se retire, e inclinou a cabeça, despedindo-se. Não me tocou a mão – talvez não o pudesse fazer – mas permaneceu apoiado às costas da poltrona, com a outra mão a agarrar a boquilha de âmbar.
Aquela imagem era tão vigorosa, e tão perturbante, que escrevi acerca dela, ao chegar a casa.»
[Anita Brookner, Olhem Para Mim; trad. Paula Reis, Teorema 1988;
pergunta indelicada]

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