31 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Podemos tratar dos dói-dóis, mas não há cura para o facto de termos nascido; há que tirar o máximo partido dessa constatação, talvez até a possibilidade de se ser feliz.»
(Michel Crépu)

Nem sempre a lápis (205)

Fiz a viagem directa e saudoso como os emigrantes; entre eles me encontro. Não tomei em conta as calças para fazer a auto-estrada às duas e tal da tarde; sem alternativa à sertã do asfalto. Esperava-me um lugar para estacionar à sombra, em frente da Câmara, mas recusei a mesa usada há três anos; no café ao lado. Optei pela esplanada que foi quintal, à sombra da nespereira, da laranjeira, da tília e outra que me convém que seja cameleira, para fazer um mimo à minha mãe. Miudagem com portáteis, ucranianos com minis, residentes com imperiais. Nem a minha namorada do colégio nem a minha amiga desde a infância, atendem o telemóvel. A Manela deve andar a queimar mais onze meses de Munique, pelas estradas da serra; a Guida tanto pode estar em Mortágua, no Porto, no Algarve, como nos Açores, a brincar às avozinhas. A esplanada é acolhedora, protegida com lençóis a corar ao Sol, movidos pela brisa que descortina a várzea até ao rio, onde pasta o gado à solta. Ao fundo, à direita, ficava o matadouro. O sangue e parte das vísceras cavaram o próprio acesso ao rio do Barril; afluente do outro, a que pertenço. Mais logo, quando mudar outra vez de mesa feito um girassol, passo pela Camor para comprar água. Há lá sabonetes Musgo Real e isqueiros muito em conta. Foi o primeiro supermercado ou cooperativa – é mais provável, pela sigla – de Mortágua; não acompanhou o crescimento das grandes superfícies, rendeu-se aos chineses. Casa do Wang, esvoaçam bandeirolas e dragões indiferentes ao que se mantém chumbado na arcada. «Passei o dia todo na feira», às quatro da tarde confirmam a possibilidade ocorrida pelo caminho. Já não a conheci à quinta-feira; era ao sábado e as fotos do rio podem esperar horas menos sociais, mais íntimas. Cruzei com caras de Mortágua a partir da Aguieira e ao atravessar o jardim, mas não reconheço a origem das caras e das vozes que me rodeiam na esplanada. Fui à nova superfície buscar água para trazer para o quarto na Aldeia Sol, e vi a Guida a debater-se com pacotes de leite para os netos. Repreendi-a com um sorriso apanhados de surpresa, e vasculhou os telemóveis (um não chega) na carteira. Que só lhe tinha ligado uma vez, empoleirou-se com um sorriso; não fiz o desenho, expliquei-lhe que as outras estavam empilhadas. Repreendeu-me a tosse e aproximou a testa para um beijo, a segredar; faz sessenta anos e quer-me lá em casa para festejar com o clã dos Lobo. Há quantos anos não vejo a mãe dela, algarvia de S. Brás de Alportel com noventa e três anos, de que conservo intacta a imagem a tocar o órgão do Jardim-Escola João de Deus. Deixei a porta aberta para entrarem as moscas, mas não se ouve trânsito e os cucos cantam na floresta; vim passar a noite à terra.

Papiro do dia (121)

«A história estética do século XX literário é a de um livro impossível de escrever e culmina nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, no momento em que Joyce pôs ponto “final” (coisa que não existe) na empresa louca que fora Finnegans Wake. Mas a embarcação foi prosseguindo a sua rota e Finnegans Wake parece, olhado de agora, um daqueles vulcões solitários que desaparecem no horizonte. Que teria Joyce pensado das combinatórias do tão vasto jogo da Internet? A realidade de que foi o demiurgo ao dar-lhe uma forma (a do “andolitá” combinada com o fluir do rio Leffey) tornou-se o caos que é o nosso ambiente. Nunca tinha acontecido que as condições para se adquirir o saber passassem a ser tão acessíveis e nunca acontecera que a possibilidade de fazer delas uma arte fosse tão improvável. O que nos falta é paciência e silêncio; o que nos falta é pura e simplesmente tempo, o que também quer dizer aborrecimento. George Steiner di-lo com toda a clareza: qual será o efeito desta realidade da leitura, na função dos livros tais como os conhecemos e amámos? É já possível constatá-lo, reparando no efeito de exotismo cada vez mais estranho suscitado pelo acto silencioso da leitura, o espanto provocado pela decisão de fulano de tal de ficar fechado em casa durante três dias para escrever. Hoje em dia, a coisa mais extraordinária seria o espectáculo de um rapazinho correndo a refugiar-se na sombra de uma cabana munido do livro que está a ler. Ao rapazinho dos nossos dias nem sequer lhe passa pela cabeça entrar no quarto para devanear, abrir um romance numa página qualquer e deixar-se hipnotizar pelo mistério dos caracteres. Estão à espera dele em toda a parte, a tribo chama por ele sem parar, na lição de judo ou de viola, no clube de teatro e até na biblioteca! A experiência da solidão, do olhar fixado na janela por cima dos telhados, a experiência dessa tão estranha e doce tristeza que se esconde no fundo de cada livro como uma luz feita de sombras, essa experiência fundamental que é, afinal, a iniciação ao mundo e à finitude, essa experiência é quase impossível, proibida, até. E em tal caso vejo-me obrigado a falar de “ódio”.»
[George Steiner, O Silêncio dos Livros (seguido de Esse vício ainda impune, de Michel Crépu); trad. Margarida Sérvulo Correia, Gradiva, Junho 2007;

30 de agosto de 2011

29 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A oralidade exige a verdade, a honestidade necessária à autocorrecção, e a democracia enquanto partilha comum. O texto escrito, o livro, tornará tudo isto caduco. O recurso à escrita debilita o poder da memória.»
(George Steiner)

Nem sempre a lápis (204)

Quando o tempo permite que retome o casaco com um livro no bolso, levo-os até à esplanada: Benjamin, Steiner, Bloom. A Angústia da Influência tornou-se presente ao arrumar O Silêncio dos Livros. Não vou muito em histórias e ainda menos em contos, se não forem bonitos e merecedores de atenção oral. Dispenso-a a ouvir Rum, contado por Blaise Cendrars. Acordei com vontade de conduzir até Mortágua, para ver a última morada no curso do rio. Limpei o ambiente de trabalho e fechei o blogue, decidido a ir à consulta. Mas pareceu-me mais saudável retirar um livro do bolso; o medo é uma doença mortal.

Papiro do dia (120)

«A censura é tão velha e omnipresente como a escrita. Nunca deixou de estar presente ao longo da história do catolicismo romano. Participou em todas as tiranias, da Roma imperial aos actuais regimes totalitários. É pura e simplesmente impossível arrolar o número impressionante de textos que foram rasurados, expurgados, falseados ou totalmente silenciados. As auto-proclamadas democracias também não têm as mãos limpas.
Porém, há duas matérias de reflexão que vêm complicar ainda mais esta análise um tanto sombria. Em primeiro lugar, a relação entre censura e criatividade pode revelar-se estranhamente produtiva. O milagre literário do período isabelino ou o da França de Luís XIV, como a história gloriosa da poesia e da ficção russas de Púchkin a Pasternak e a Brodsky parecem articular-se, numa dialéctica complexa, com as pressões que na altura se faziam sentir e com a ameaça da censura. O que quer que faça com que uma grande literatura seja subversiva, que diga “não” à barbárie, à estupidez, àquela ética capitalista, degradada, do consumo massificado que desvaloriza o nosso trabalho e as nossas vidas, essa qualquer coisa brotou sempre, como reacção, do território da censura e da opressão. “Esmaguem-nos”, dizia Joyce à censura católica, “que nós somos como as azeitonas.” Ou, como sussurrava Borges: “A censura é a mãe da metáfora.” Quando o aparelho de repressão cede aos valores veiculados pelos mass media ou ao matraquear da publicidade, como acontece hoje em dia na Europa ocidental, assistimos ao triunfo da mediocridade.»
[George Steiner, O Silêncio dos Livros (seguido de Esse vício ainda impune, de Michel Crépu); trad. Margarida Sérvulo Correia, Gradiva, Junho 2007]

27 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Os poetas enquanto poetas não podem aceitar substituições e lutam até ao fim para ter a sua primeira oportunidade a sós.»
(Harold Bloom)

Nem sempre a lápis (203)

Tomei o chá do crepúsculo a matutar numa afirmação de George Steiner lida em O Silêncio dos Livros. O original é de Janeiro de 2005, leio na edição portuguesa só dois anos mais velha. Em traços gerais, decorridos quatro anos sobre a primeira leitura, surge a divergência quanto à conclusão de um estudo: «uma considerável percentagem de adolescentes é incapaz de ler sem música de fundo»; a prótese electrónica. Quando ainda havia cafés – precisamente os referidos por Steiner em Uma Ideia da Europa –, a maior parte deles oferecia o jornal da casa; hábito que em alguns dos estabelecimentos que os substituíram subsiste, deturpado pela imprensa desportiva e de nem por casa se trazer. Os cafés possuíam um barulho de fundo, rádio e bilhares incluídos, propício ao silêncio da leitura e da intimidade da escrita. Como o movimento das esplanadas, estáticas, e a ilusão veiculada pelas carruagens de comboio, em andamento. Escrevo, anoto, por vezes leio, mas perdi a necessidade de lugares públicos, à medida que conquistava e moldava ao silêncio criado pela leitura; a casa.

[tásse]

Papiro do dia (119)

«– Os carros – disse, pensativo, o dinamarquês – têm qualquer coisa de essencial. Creio que é da representação da distância que vem a sua força, esse encanto de que qualquer charlatán sabe valer-se montando a sua tenda num carro para vender restauradores capilares ou elixires da longa vida. Isto dos carros já vem de longe. E o que vem de longe é sempre especial. Pensei, ao ouvir estas palavras, num curioso livrinho que há pouco tempo me caiu nas mãos, num antiquário de Munique, e que pertencia a um lote de livros procedente de uma extinta companhia de mala-posta. Chamava-se “O carro e as suas transformações ao longo dos tempos”. Comprei-o picado pela curiosidade e por causa do seu formato sugestivo, mas trago-o sempre comigo. Tinha-o comigo nessa altura e quando me cansei do espectáculo, recostei-me na minha cadeira e pus-me a folheá-lo.
Vinham lá representados todos os tipos de carros e carruagens e num apêndice também o carro-barco – o carrus navalis, donde muitos pensam que deriva a controversa palavra “carnaval”. Esta origem parece ser mais aceitável do que a etimologia monacal de trazer por casa que encontra na palavra uma alusão à quaresma e lê aí carne vale! Olá, carne. Mais tarde, quando se aprofundaram mais as coisas, recordou-se o antigo costume de festejar com um alegre cortejo a devolução dos barcos à água, a seguir às intempéries do Inverno, e foi então que se pensou nos carros-barcos latinos.»
[Walter Benjamin, Historias e Contos; trad. Telma Costa, Teorema, 1992]

25 de agosto de 2011



Quem não tem cão....

exacto

... e freguesias a extinguir, segu(i)ndo a troika

23 de agosto de 2011

Desculpem, mas tive de sair



e já volto

19 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«O texto é um raio cujo trovão só se ouve muito tempo depois.»
(Walter Benjamin)

Nem sempre a lápis (202)

É tão breve a alegria e a liberdade do Verão. Assalta-nos entre Abril e Maio; entregamo-nos até Outubro ridicularizar a roupa e a atitude. Passo os olhos pelas bancas com cabeleiras de echarpes, T-shirts irónicas, túnicas e bombachas à Sudoeste, a oferta trepidante de artesanato de couro e de pedra e de prata martelada, sem as sandálias de Asilah. Doença prolongada é metáfora para abreviar a dor de uma vida desnecessariamente longa.

Papiro do dia (118)

«Temos tendência a esquecer que, por serem altamente vulneráveis, os livros podem ser suprimidos ou destruídos. Como as demais produções humanas, os livros são portadores de uma história, história essa cujos primórdios continham já em germe a possibilidade ou a eventualidade de um fim.
Pouco sabemos acerca desses primeiros passos. Na China, textos de natureza ritual ou didáctica remontam com certeza ao segundo milénio anterior à nossa era. Quer os escritos administrativos e comerciais produzidos na Suméria, quer os proto-alfabetos e alfabetos nascidos no Mediterrâneo oriental são testemunhos de uma evolução complexa, cuja cronologia rigorosa ainda está por determinar. Na nossa tradição ocidental, os primeiros “livros” foram tabuinhas de leis, registos comerciais, prescrições médicas, ou previsões astronómicas. As crónicas historiográficas, intimamente associadas a um tipo de arquitectura triunfalista e a comemorações de vingança, precederam, com toda a certeza, tudo aquilo a que chamamos “literatura”; ou seja, a epopeia de Gilgamesh, já que os mais antigos fragmentos datados da Bíblia dos Hebreus são tardios, muito mais próximos do Ulisses de James Joyce do que das suas próprias origens, que se relacionam com o canto arcaico e a narrativa oral.
A escrita constitui um arquipélago na imensidade oceânica da oralidade humana. A escrita – e não vale a pena determo-nos nos diferentes formatos que o livro foi assumindo – configura um caso à parte, uma técnica específica entre um todo semiótico maioritariamente oral. Milhares de anos antes do processo de desenvolvimento das fórmulas escritas já se contavam histórias, já se transmitiam por via oral ensinamentos de carácter religioso e mágico, já se compunham e se transmitiam fórmulas encantatórias de amor, ou então anátemas. Chegou até nós, alheia a toda e qualquer forma de alfabetização, uma multidão de sonoridades vindas de comunidades étnicas primitivas, de mitologias elaboradas, de saberes tradicionais relativos à natureza. Não existe neste planeta um único ser humano que não mantenha com a música um qualquer tipo de relação. A música, sob a forma do canto ou da execução instrumental, parece ser de facto universal. É a linguagem fundamental para comunicar sentimentos e significações. A maior parte das pessoas não lê livros. Porém, canta e dança.»

[George Steiner, O Silêncio dos Livros (seguido de Esse vício ainda impune, de Michel Crépu; trad. Margarida Sérvulo Correia, Gradiva, Junho 2007]

18 de agosto de 2011

17 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Foram muitos os que uivaram com os lobos.
E não poucos os que se deixaram devorar pelo remorso.»

Nem sempre a lápis (201)

Não é no terminal do Marquês, é na paragem das Amoreiras que colho os ingredientes para o cheiro dos livros; em andamento. Surgem ao virar da esquina, quando apanho o 24 de memória e transponho o arco para atravessar o jardim a pé, paredes-meias com o sortilégio da água a gotejar e a hospitalidade do casal Vieira Arpad; seda e óleo de linhaça, carvão e lodo. Não me lembro de ver nódoas de amoras pisadas no chão, como as havia na feira de Mortágua; só me ocorrem horas autistas partilhadas com os bichos-da-seda numa caixa de camisa do meu pai, forrada com folhas no regresso da escola. Foi numa vinda a casa para almoçar, que perdi o meu primeiro cão; esqueceram-se de fechar a porteira. Tão desprevenido como ele, o Mondego, desço ao Largo do Rato e o cheiro a alcatrão fresco atropela-me e asfixia-me, leva-me de rojo pelo tapete engomado pelos cilindros, até à Cister; outra vez. Escorrego para fora da lava e refugio-me no atelier da Inês Mateus. Passinho manso a aspirar as transversais à Rua da Imprensa Nacional; outros cheiros e outras cores, vindos de prédios sem história. Viro na sombra de uma delas, já com as copas das árvores de outros jardins à vista e são mais do que sabia. Toco a campainha de uma porta de madeira, baixa, rematada por dois andares e uma varanda a toda a largura do pequeno prédio de origem. Ao cimo daqueles lanços de escada estreita - de madeira com currículo, encadernado a cera e corrimão de jardim, de ferro pintado a verde - a incredulidade espera-me sobre a mesa, ao lado do computador. Uma prova de capa e um ramo de trinta e duas páginas, divididas para quarenta e oito com as emendas colhidas pelo caminho. Tenho-as à minha frente, em cima da mesa 114 da esplanada do Príncipe Real, onde há pouco mais de um mês nos sentámos a uma outra, sem percebermos em que camisa de onze varas me metia. Na sacola, junto com as provas domésticas impressas pela miúda da boina, trouxe Agostinho da Silva (As Aproximações, Guimarães Editores, composto e impresso em Abril de 1960). Enquanto espero por ela, para lhe pregar a partida e saber como vamos de música e de leitura, esparramo-me no cheiro dos livros trazido pela brisa, que antecede a hora de repousar na ausência do banco.

Papiro do dia (117)

«Às vezes dou por mim a pensar na vida clandestina de certos pensamentos daninhos. Afigura-se-me um enigma: é o segundo nome que adquire a sua presença. Sei de uma interpretação do mito do labirinto de Creta. Minos tem pesadelos nas quais Astério tem nojo de comer aqueles que tentam usurpar-lhe o reino. Os jovens que devem a vida ao tédio escondem-se atrás de paredes de fúria e conspiram nas entranhas do castigo a criação de uma nova raça. O poder consiste em aterrorizar o medo, pensa Minos, aqueles muros foram feitos para multiplicar a minha força. O terror é a rocha que dá forma aos pensamentos e os divide. Minos não consegue deixar de pensar, pois os seus pensamentos refletem a luta silenciosa que, ao fim de um certo tempo, se converterá em homens-saque. A esposa, Pasífae, observa-o em silêncio, apoiada numa coluna de ónix. Esqueceu os seus amores com touros desde que viu a humanidade a fugir do rosto do pequeno; esvaiu-se em sangue de tanto esperar. O pormenor empírico do mito é que Pasífae gostava do acesso à bruta, que deriva do grego “sexo de assento”.
Minos ainda não sabe que a conspiração, para a qual o magnífico labirinto foi criado, é uma forma de agradecimento dos partisans. Que para os fazer sair do seu esconderijo, dos seus disfarces de doninha, tem de apelar à crueldade da qual deriva a sua força. Intui, graças a esta seita apócrifa de pensamentos, que a análise da ferocidade, o corpo moroso das suspeitas, o acabou por obrigar a erigir-se numa pura forma de domínio e de destruição física. Não basta ter dado um filho bastardo à causa (Astério, fruto do desejo de uma rainha que combinou a luxúria dos homens com a dos animais, não tem causas própria): o pensamento do exército tem de condescender à sua forma física. Entretanto, no centro do labirinto e através da espessura dos dias e dos túneis, em cada um dos seus meandros, os muros rezam: Quando o Estado se vir obrigado a erigir-se numa pura forma de domínio e de destruição física, as condições para a vitória da revolução estarão reunidas. Os muros, mas mais ninguém reza, estão todos mortos.»

[Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens; trad. Margarida Amaro Acosta, Quetzal, 2011;

16 de agosto de 2011

Que faz um poeta em Lisboa?
Espera, até que a escrita doa.

15 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

«Tentamos dar o máximo de visibilidade aos catálogos das pequenas editoras, a edições de autor e a textos esquecidos. Privilegiamos, sem nenhum pudor de o expressar, as editoras e chancelas de qualidade. Somos particularmente exigentes na selecção dos livros da secção infantil e juvenil, tanto em termos da qualidade gráfica como pedagógica. Afinal de contas, é quase sempre nestas faixas etárias que se ganha o apetite, ou não, pela leitura.»

Às vezes, lá calha...

«Em certas épocas de crise, qualquer anão míope
é substituível por um clérigo leitor de Céline.»

Nem sempre a lápis (200)

A loucura é um cão rafeiro. Se fareja medo, aproxima-se; ataca. Às vezes, paro e encaro-o de frente, como se desse uns passos em toda a extensão do passado. E então a loucura foge, aninha-se na memória com o rabo entre as pernas.
[rafeiro]

Papiro do dia (116)

«Cris, a mãe de Mara, ainda é muito bonita, e decidiu nunca mais voltar a casas. Prefere ter namorados “com cama fora”, como não se cansa de repetir, convencida de que esta expressão ainda está na moda. Mara perdeu a virgindade aos dezasseis anos, uns meses depois de escrever aquele poema, com um dos amigos da mãe. Chorar deixava-a muito sensibilizada, e no termo daquelas sessões de culpa histórica e visões de besteiras a esborracharem jugulares de raparigas belas, sentia um prazer irreconhecível quando se prostrava muda, de olhos fechados, deixando que umas manápulas lhe tirassem devagarinho aquilo que nas traduções galegas de Henry Miller que ela lia se chamavam “bragas”. Depois começou a andar com dois punks. Durante todo esse tempo, debaixo desses homens, às vezes Mara lamentava não ter nascido no momento certo, ter-se perdido numa voragem deslumbrante de valor e sensualidade, porque, conforme ditavam as suas imagens – envolta em sussurros, baba e estertores, marcando com risquinhos as suas primeiras aproximações a um orgasmo –, não devia haver nada mais belo neste mundo que trabalhar pela Justiça e foder pela Pátria.
Que é, precisamente, o que eu andava a fazer e pretendo fazer ainda mais.»

[Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens; trad. Margarida Amaro Acosta, Quetzal, 2011]

14 de agosto de 2011

... dizem que a paixão o conheceu


... conhece a solidão de quem permanece acordado 

13 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«No meu pied-à-terre cultivei uma expansiva autoridade. Pilhas de livros e de papéis convivem lado a lado com o meu computador e outras biologias dependentes da electricidade.»

Nem sempre a lápis (199)


Nasci, cresci, mas não me deixei encarquilhar no meio da maior das violências, familiar, doméstica, profissional, tribal. Não adianta nada dourar a moldura e sorrir para o retrato de família. São todas de se fugir; não tive outro remédio, para envelhecer à minha vontade.
A minha mãe teve o cuidado de avisar muito cedo, quando me fechava no sótão de castigo, por exemplo. «O mundo é violento», dizia, naquele ancestral tom fallorquiano que não contemplava dúvidas nem certezas. Durante umas insuportáveis férias na quinta de Baratã, nas Mercês, quando descobri uma escrivaninha nas águas-furtadas, com vista para o pomar e o pinhal, todo entretido a dar cabo de uma rotring, devem ter dito qualquer coisa que não me soou bem e nunca mais esqueci: «Não se lhe pode dizer nada; é um vidrinho». Ora, eu nessa altura ainda não usava óculos e, por acaso, até tenho pena de não poder perguntar a esse meu segundo-primo, ao senhor engenheiro sem filhos e a ressacar um espectacular par de cornos, soube mais tarde, se ele não estaria a chamar-me paneleiro quando eu tinha seis ou sete anos.
Não posso, o homem já não atende.
Entretanto, «aprendera através das minhas leituras que as pessoas quando estão aborrecidas podem fazer coisas horríveis. Na verdade, fazem-nas para se sentirem infelizes e não aborrecidas» (Sam Savage).

Papiro do dia (115)

«A mãe abriu de par em par os seus enormes olhos verdes e acariciou-lhe a testa vasta e formosa: Mara, quando o teu pai e eu nos conhecemos, o teu pai tinha uma namorada e, eu, outro namorado. Eu era troska, ele era monto. A minha melhor amiga e eu passávamos a vida a discutir com os montos, não sei porquê, mas eram lindos. Tinham umas enormes bigodaças, o cabelo comprido, e eram intelectuais comprometidos. Uma noite, havia eleições na faculdade e fomos armar barraca para a rua. Estávamos bastante bêbedos e a Liliana pôs-se aos amassos com um das FAR. E olha, pim pam pum catrapum, os tipos do PST são mesmo parvos (o Partido Socialista dos Trabalhadores, lembras-te de te falar dele, quando te disse que o tio Rover era militante e depois se foi embora?), e eu gostava muito do da Liliana, mas houve um apagão e eu acabei por ir para a cama com o amigo dele, o Martí. O Martí foi assassinado dois dias depois, e o Juan Carlos (o pessegão) foi ao dentista chumbar um dente no dia seguinte. Veio ver-me a minha casa (eu vivia com a Liliana, mas era óbvio que ele me queria ver a mim, porque quando aparecia à janela que dava para a rua fez um sinal e eu desci clandestinamente para me encontrar com ele noutra esquina. Estava um bocado de frio, mas comemo-nos mesmo ali, contra a parede, não te incomoda que eu te conte estas coisas, pois não?) e contou-me que ia para Formosa, que estava para acontecer uma operação importante. E eu disse-lhe: Ó Juan Carlos, eu gosto muito de ti, mas sou troska até à raiz dos cabelos, e então ele pediu-me que fosse acordar a Liliana. Foram ambos mortos em combate. Sempre que olho para esta data, penso em ti e congratulo-me por ter permanecido fiel aos meus ideais, à minha forma de ver a revolução, e penso em ti e no teu irmão e no que poderia ter sucedido se tivesse havido outro apagão, se eu não tivesse tido a lucidez de dizer: sim, é muito bonito, é monto, mas quero lá saber; trata-se de ideologia, não de concurso de quecas.»

[Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens; trad. Margarida Amaro Acosta, Quetzal, 2011;

12 de agosto de 2011

... enfim,



11 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

«Enquanto tenho de estar e presenciar, incomoda-me a passividade daquela massa que, espichada ao sol, involuntariamente provoca a imaginação de horrendas cópulas, hábitos vis, atitudes indecentes, satisfações alvares, peidos e arrotos.»

Às vezes, lá calha...

Nem sempre a lápis (198)

Habituei-me às mais reles desconsiderações, às mais vis traições, às mais baixas faltas de respeito, às mais dolorosas rejeições, com um sorriso. Pode ser um sorriso sério, mas sorrio.

Papiro do dia (114)

«Ele inclui-a nos favoritos do seu blogue, e ela imitou-o. O blogue de Pabst tinha fundo verde e preto; as letras dos posts eram de cores diversas combinadas em tipografia helvética. Cultivava uma serena nostalgia dos anos 90, a década que assistira ao seu desenvolvimento e o vira deixar de ser um anão rechonchudo para se transformar num indivíduo proporcionado carente de qualquer beleza e vitalidade. No seu blogue havia referências a todos os discos e cantores de que sempre fugira nos décimos quintos aniversários das raparigas proibidas: Milli Vanilli, Jazzy Mel, Ace of Base, Tchnotronic, eram as bandas sonoras pelas quais navegam as carinhas incorruptas de Flor G, Caro T, Maru Z. Enquanto as ouvia, batia punhetas de humilhação, um petisco recentemente descoberto e assaz excitante.
No blogue dele tinha uma lista atualizada de recursos para partilhar software pirata e uma interessante coleção de pornografia macabra. Não porque os seus interesses acalentassem com idêntica fruição a guerrilha informática ou o abuso sistemático de mulheres grávidas, mas porque a sua mente contaminada de obsessões próprias de uma autoestima incorrigível compreendera que o regime de acesso à empatia contemporânea se acha vinculado ao uso inteligente, glamoroso, da crueldade. Nos anos 70, pelo contrário, não havia como ser pioroso. Podias bradar aos quatro ventos que o teu objectivo na vida era ser poeta maldito, que ninguém se ria na tua cara. Agora é diferente. O sentido estético da nossa faixa etária evoluiu.»

[Pola Oloixarac, As Teorias Selvagens; trad. Margarida Amaro Acosta, Quetzal, 2011]

10 de agosto de 2011

A santérrima trindade

Em nome do

e do
e


[iluminado por ordem de leitura]

9 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Os nomes morrem com quem os deu.
O cão dum morto não tem nome.»

Nem sempre a lápis (197)

Às vezes, perguntam-me e interrogo-me o que me tornou «refém de Tânger» (Mohamed Choukri), há quase quarenta anos. Em Diário Volúvel surpreendeu-me um flash semelhante ao que apoquentou Vila-Matas, enquanto via as fotos do Rajastão para uma exposição do seu antigo colega no colégio dos maristas e um craque do xadrez, Tito Dalmau: «Se não se desse o caso de ser improvável, afirmaria agora mesmo que é o velho hindu que há anos, num antigo claustro cátaro dos arredores da cidade de Soria, me trespassou com um só olhar e depois se afastou sigilosamente. Pensei sempre que na sua expressão havia algo especial para mim, que me quis dizer algo, nunca soube o quê.»
Creio que continuo à espera de encontrar o djin, todo vestido de branco e a acariciar um ouriço-cacheiro na palma da mão, com que me cruzei a primeira vez que saí do ferry, encaminhando-me ao longo da avenida do porto de Tânger com a mochila às costas. Fitou-me nos olhos à medida que me aproximava e, quando nos cruzámos, escangalhou-se a rir.
Como continuo a vê-lo rir-se, passei a apanhar um táxi e a ficar no Hotel Rembrandt; talvez apoquentado com o que não me disse e ainda não sei se quero ou já sei saber.

Papiro do dia (113)

«Ah, as vésperas dissonantes que as quinquilharias do bufarinheiro repicam através do longo crepúsculo e sobre a estrada florestal sarapintada, ele vergado e acossado ao percorrer os recrementos ventosos do dia, dir-se-ia um daqueles vetustos exilados que, divorciados da corporalidade e ante a defensão de ingressar no Paraíso ou no Inferno, vagueiam para todo o sempre nas caóticas extensões intermédias, sem rumo, incriados alvo de anátema. Acossados pela amargura, pela culpa, ou, como no caso deste sombrio vendedor ambulante, perseguidos sem descanso através de florestas e pauis pelos clamores dos seus próprios artefactos rabugentos e inconsoláveis, numa sempiterna maldição metálica.
Chegado à clareira, pousou os varais da carroça e contornou os vestígios de uma fogueira do seio da qual assomava uma esguia haste de fumo, semelhante ao pistilo de uma flor queimada, com o fino nariz franzido e olhos cautelosos. Os contornos de homens que ali tinham dormido recortavam-se na erva calcada e empeçonhada. Ele pôs o menino no chão e apanhou lenha e tornou a atear o lume. As trevas tombaram e os morcegos vieram caçar no aceiro, voando para trás e para diante como pequenas almas sem voz acima da silhueta ali cabisbaixa, de ar soturno, apoiada nas canelas magras. Depois foram-se embora. Uma raposa parou de regougar. O bufarinheiro, envolto na sua manta roída das traças, cabeceava. O menino dormia.
Os três homens, ao surgirem, quase pareceram ter assomado da terra. O bufarinheiro não foi capaz de explicar aquela aparição. Reuniram-se em volta do fogo e olharam-no de alto. Um deles trazia uma espingarda e sorriu. Viva, saudou o bufarinheiro.»

[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D’Água, Junho 2011;
quinquilharia]

7 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Gosto de saber o nome dum homem quando o tomo ao meu serviço. Gosto de saber isso, antes de mais nada. O resto consigo descobrir sozinho.»
[via Net]

Nem sempre a lápis (196)

À medida que o tempo se aproxima, algo me leva a sair de casa para descer na colina das Amoreiras e seguir pela cumeeira do Príncipe Real; a pé. Teve dois residentes, que eu saiba: um banco de jardim e Agostinho da Silva, além do passeante John Berger. Eu fui sempre uma sombra, igual à que perdi em Tânger.

Papiro do dia (112)

«Ela não sabia que ia partir. Acordou de noite e levantou-se da cama, quase em êxtase, e começou a vestir-se, sempre nas trevas e com gestos graves. Talvez um sonho a tivesse impelido a agir assim. Tirou os seus poucos haveres do roupeiro-cómoda e enrolou-os numa trouxa e saiu para o patamar diante da porta do quarto. Ficou à escuta da respiração dele no quarto em frente, mas nada conseguiu ouvir. Agachou-se no escuro durante muito, muito tempo, com medo de que ele estivesse acordado, e quando se decidiu a descer as escadas de pés descalços deteve-se novamente na base dos degraus, num vestíbulo negro e sem vida, e apurou o ouvido, atenta a qualquer som vindo do alto da escada. E aguardou de novo junto à porta da frente, com esta já aberta, suspensa entre as fauces da casa morta e sem amor e as trevas exteriores, qual ladrão frágil. O ar estava húmido e frio, e ela ouvia os primeiros galos a cantar. Fechou a porta e desceu o carreiro até à cancela e saiu para a estrada, percorrida por calafrios à gélida luz das estrelas, sob vega e a hidra.
Caminhou para oeste pela estrada enquanto o céu se ia tornando mais pálido e o mundo das formas a despertar crescia gradualmente à sua volta. Precipitando-se assim, com o nascer do Sol nas suas costas, tinha a aparência de uma refugiada daquele acontecimento, transtornada pelo alvorecer. Ainda não se tinha afastara muito quando ouviu um cavalo na estrada atrás de si e fugiu para o seio do bosque, com o coração nas mãos. O animal irrompeu do sol num galope vagaroso, uma silhueta torturada de contornos liquefeitos. Ela agachou-se nos arbustos e observou-o, um enorme cavalo a emergir, cauterizado e ileso, do olho do Sol, para depois passar como uma caravela naufragada, de costelas descarnadas e negro e louco, com a sela esfiampada e os estribos a baloiçar e os cascos a ressoar suavemente na poeira e assim passou, enorme e esquelético e esbraseado, e o som do seu passo dissipou-se estrada fora até só restar o eco distante de aplausos num salão para sempre vazio.»

[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D’Água, Junho 2011;
olho do Sol]

6 de agosto de 2011

5 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Qualquer agrupamento secreto, quer seja doutrinário quer voltado para a acção, uma seita ou uma conspiração – a fronteira entre estes dois tipos de agrupamento é, aliás bastante difícil de traçar, sendo o agrupamento de acção, ou nisso se tornando quase sempre, um agrupamento doutrinário –, é um agrupamento com um segredo, ou segredos

«É bom trabalhar nas Obras» (96)

«Enquanto entrava no automóvel, levando de volta o vídeo que seria a primeira emissão da campanha do "Não", Bettini duvidou se iria conseguir coordenar bem os movimentos. Os copos a mais, não eram nada comparados com o sismo que lhe percorria o corpo. Com que então, os comissários políticos achavam que a sua campanha era inofensiva, um simpático comentário de nota de rodapé, uma mosquinha morta, um chazinho deslavado de anciã.
Todas as noites de insónia e de fúria contra o piano para parir "alegria", conduziram apenas a sorrisos irónicos dos homens que o tinham contratado.
Se o super-inimigo ministro do Interior conseguiu que lhe partissem a clavícula, os seus próprios clientes tinham-lhe partido a alma.
Sentiu um soluço no estômago. Os olhos inchados. A morrinha era o cão fiel acompanhante dos mendigos. Condoeu-se de si. Abraçou-se à sua auto-compaixão.
Este "Não", que seria o seu reencontro com a criação, começava a ser uma carta de despedida. O pai tinha-lhe ensinado a não depositar demasiadas esperanças em nada, a não fazer depender a vida actual do eventual resultado de alguma iniciativa. "Pensa sempre que vais perder." Uma filosofia completamente alheia à praticada pela sua mulher Magdalena e as suas amigas: conselhos para beneficiar a digestão, auto-ajuda, budismo na vida quotidiana, zen para aqui, zen para ali. Se tivermos maus pensamentos, convocamos a sua realização. Se tivermos pensamentos positivos, a felicidade vem ter connosco a abanar o rabinho. Tinha acreditado no fucking "Não", como no anjo-da-guarda quando era criança. Delegou nele a sua protecção, os seus anseios. Tinha ido contra a sensatez e a certeza de que, desta vez, David não ia vencer Golias. Que a poesia não tinha sequer a força do pulmão de um canário para incomodar o papão.
O pensar poético de Magdalena era puro whisful thinking. Tudo o que a vaga da ditadura tinha lançado sobre os roqueiros e as praias, não passava de detritos de naufrágios: Raúl Alarcón e o seu partner Strauss, Olwyn, convencido pela sua boa-fé de que poderia vir a ser o rei da liberdade, e o seu sonho – aquele arco-íris caído do céu – era a premonição de um cataclismo e não um hino de vitória.
Pôs a chave na ignição do carro e sentiu que o gás do tubo de escape entrava no habitáculo por algum dos vários orifícios da sua antiga carroçaria. O cheiro a Santiago estava ali, um animalejo indefinido a duplicar-se na morrinha, animado pelos faróis dos carros que avançavam com dificuldade à hora de ponta, a morder os pneus recauchutados até à ignomínia.
Não tardaria a Primavera, mas não a dos poetas. A maldita Primavera da canção na rádio.»

[Antonio Skarmeta, Os dias do arco-íris; em tradução para a Teodolito;

Papiro do dia (111)

«Os dois podengos ergueram-se a uivar do alpendre, com cerdas eriçadas de javali e os olhos revirados, e desceram ao encontro das trevas exteriores. O velho pegou na caçadeira e espreitou através da vidraça deformada da sua janelinha. Três homens subiram os degraus e um bateu à porta. E quem ‘tá aí? Um ministro do Senhor. O ténue clarão da cadeia a derramar-se ao longo da porta, o rosto sorridente, a barba negra, o fato negro muito justo e coberto de poeira. Num bruxulear prolongado e vivo, a luz percorreu a lâmina da faca no momento em que esta se lhe enterrou no ventre com um sopro abafado de gás. Sentiu subitamente um grande frio a invadi-lo. Os cães tinham desaparecido e não havia réstia de som em nenhum recanto da noite. Ministro?, disse ele. Ministro? O assassino sorriu-lhe com dentes cintilantes, os rostos dos outros dois a espreitarem-lhe por cima dos ombros numa perversidade consubstancial, uma trindade lúgubre que o observava sem palavras, afável. Ele baixou o rosto para o punho do homem, fechado em concha contra o seu próprio estômago. O punho subiu numa erupção de vísceras retalhadas até a lâmina se prender na junção do esterno, e ele ficou ali de pé, esventrado. Estendeu o braço e apoiou a mão na ombreira da porta. Deu um passo atrás, como que para lhes dar passagem.»

[Cormac McCarthy, Nas Trevas Exteriores; trad. Paulo Faria, Relógio D’Água, Junho 2011;
com licença]

4 de agosto de 2011

... go, said the birth



3 de agosto de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Não deixes entrar nenhum estranho enquanto eu ‘tiver fora.
Ela soltou um fundo suspiro. Não há uma só alma neste mundo que não seja um estranho para mim, disse.»