22 de março de 2012

«É bom trabalhar nas Obras» (107)

«A noite raras vezes é o território das crianças. Eu tinha dormido bem toda a minha vida e não era daquelas pessoas que se detêm a escutar os ruídos da madrugada. Para não pensar no bicho, procurei os meus binóculos e concentrei a minha mente, geralmente mais voltada para o sonho e as histórias fantasiosas, no que se passava lá em baixo no prédio. Ali de pé, atrás das cortinas, vi estacionar homens de fato com atitude ébria ou cansada e caminhar para as suas respectivas portas; vi um adolescente com a namorada aparecer e desaparecer várias vezes detrás dos arbustos que havia em frente do estacionamento; vi um gato a fintar a passagem dos automóveis num jogo suicida. Nada disso conseguiu interessar-me muito tempo, até que levantei o olhar e descobri que no prédio em frente, precisamente à altura do meu apartamento, numa simetria de pasmar, havia outra rapariga que observava o mundo da sua janela, com uma expressão tão infeliz como a que eu devia ter naquele momento. Chamava-se Ximena. Conhecia-a de vista e simpatizava com ela. Tinha-a observado várias vezes a atravessar a rua com aquele ar um pouco ausente que a caracterizava. No entanto, posso dizer que essa noite a vi pela primeira vez, não da maneira indiferente com que se costuma observar o vaivém dos vizinhos, mas de forma realmente atenta, e com empatia. Não podia ter a certeza, mas algo me fez sentir que ela também estava a olhar para mim. De repente, a distância que separava os nossos prédios tornou-se muito curta e senti que, se tentasse, ter-me-ia sido possível aperceber do seu bafo impresso na janela embaciada, escutar a sua respiração, compreender o que estava a viver.
Essa noite introduziu um novo hábito: quando as luzes se apagavam nos nossos respectivos apartamentos, ela e eu acorríamos ao encontro sem falta. O ritual consistia em permanecer de pé, uma em frente da outra, e assim fazermo-nos companhia até sermos vencidas pelo sono.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
território]

1 comentário:

F disse...

Para quando a publicação? Já há data?