13 de março de 2012

Papiro do dia (197)

«Uma livraria e papelaria do boulevard de Clichy permanecia aberta até à uma hora da manhã. Mattei. Um simples nome na fachada. O nome do proprietário? Nunca me atrevi a fazer a pergunta ao homem moreno que usava bigode e um casaco príncipe-de-gales e estava sempre sentado a uma secretária, a ler. Os clientes interrompiam-lhe a leitura para comprar postais ou blocos de papel de carta. À hora em que eu lá entrava, quase não havia clientes, a não ser, às vezes, algumas pessoas que saíam do Minuit Chansons, ao lado. Em geral, encontrávamo-nos sozinhos na livraria, eu e ele. Na montra, estavam sempre expostos os mesmos livros, que percebi rapidamente serem de ficção científica.
À direita, nas prateleiras perto da montra, viam-se livros em segunda mão consagrados à astronomia. Saltara-me à vista um deles, de capa cor de laranja meio rasgada: Voyage dans l’infini. Ainda o tenho. No sábado à noite em que quis comprá-lo, era a única cliente na livraria e quase não se ouvia o barulho do boulevard. Através da montra, viam-se alguns anúncios luminosos e mesmo o azul e branco dos “Mais Belos Nus do Mundo”, mas pareciam tão longínquos… Eu não me atrevia a incomodar aquele homem que lia, sentado, de cabeça baixa. Fiquei calada uns bons dez minutos, antes de o ver voltar-se para mim. Estendi-lhe o livro. Ele sorriu: “É muito bom. Mesmo muito bom… e Voyage dans l’infini…” Preparava-me para lhe pagar, mas ele ergueu o braço: “Não… não… Dou-lho… E desejo-lhe uma boa viagem…”»
[Patrick Modiano, No Café da Juventude Perdida; trad. Isabel St. Aubyn, ASA, Abril 2009;
regresso]

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