2 de abril de 2012

«É bom trabalhar nas Obras» (110)

«Chamava-se Lisa e o seu filho Benjamín andava no mesmo ano do meu irmão. Viviam numa parte muito bonita da cidade, cheia de vivendas, pequenas mas muito encantadoras. Os móveis eram todos exóticos e estavam junto ao chão, como nas ilustrações de As Mil e Uma Noites. Contou-nos que tinha sido casada com um homem marroquino, o pai do seu filho, mas que as coisas não tinham funcionado bem entre eles. Agora, vivia de novo em França e sentia-se muito mais feliz. Enquanto falava, a campainha tocou várias vezes e, pela porta entreaberta da casa, vimos chegar mais duas ou três pessoas que pareciam amigos dela.
- Nesta casa, as quartas-feiras são colectivas. Eu faço o couscous como em Casablanca e as pessoas que quiserem podem ir aparecendo para nos acompanhar.
Sentámo-nos a comer no chão, sobre umas almofadas dispostas à volta de uma mesa muito baixa. Se na cantine tinha visto utilizar os talheres como lanças, aqui nem sequer estavam presentes. Os comensais mentiam a mão na enorme panela para a levarem logo à boca. Eu sentia-me agradecida por aquele convite que nos tinha evitado passar horas em frente da escola. Quando acabámos de comer, Lisa serviu chá de menta a todos e emprestou-nos o seu telefone para avisar a minha mãe onde estávamos.
- Se não puder vir, não faz mal. Podem aqui ficar o tempo que for preciso.
Mas a mamã chegou de imediato e foi assim como também ela acabou por participar na cerimónia do chá com os restantes convidados. Simpatizou desde o princípio com a nossa anfitriã e trocaram os números de telefone. Desde essa tarde, quando saiu da casa dela, a minha mãe começou a chamar à Lisa, baba cool, uma expressão coloquial que se usa em França para se referir com simpatia aos hippies. Nesses anos, havia muitos em Aix e é provável que ainda continue a haver, pois a cidade presta-se para isso. Lisa abriu-nos as portas daquele novo universo. Conhecia bem os pais da escola e mantinha boas relações com alguns de eles. À medida que a fomos conhecendo, descobrimos que, no fundo, era uma mulher bastante intransigente. Não suportava ninguém que pudesse dar indícios de burguesia. A sua atitude, mais do que cool, podia inclusive raiar o fundamentalismo. Cada vez que o acaso a levava a casa de alguma família endinheirada e conservadora, cometia actos de terrorismo do género de peidar-se sonoramente à mesa da Passagem de Ano ou baixar as calças para urinar na piscina. Connosco, pelo contrário, comportava-se como uma verdadeira dama. Continuámos a visitá-la durante toda a nossa estada em Aix e também mais adiante. Às vezes, também me convidava para sair, como se fosse sua amiga, e tomávamos um café antes de nos metermos num cinema de vanguarda. Com ela, descobri Pedro Almodóvar, cujo filme Que Fiz Eu Para Merecer Isto recordo perfeitamente, apesar de nunca mais o ter voltado a ver.»
[Guadalupe Nettel, O corpo em que nasci; em tradução para a Teodolito;
ledora]

1 comentário:

Cristina Torrão disse...

:D

Já aqui disse algo parecido: combater obsessivamente as normas (ou obsessões), também é uma obsessão, a chave para a intransigência, para o fundamentalismo.