7 de dezembro de 2012

Papiro do dia (281)

«A cozinha era escura e húmida; recordo-me de que o avô se lamentava continuamente e repetia a terrível palavra “húmida, húmida” com o mesmo ar de quando achava a sopa salgada. Ora a cozinha só tinha aquele nome por causa da grande chaminé, em volta da qual, nas noites de Inverno, se reuniam homens a beber e a jogar às cartas; de resto, servia de arrumação e armazém e encontrava-se apinhada de caixotes de rum vazios e de garrafas de água de Seltz, e nós, os garotos, estabelecemos aí o nosso quartel-general de acaso, como nos sugeria o nosso amor à guerra. Esquecerei alguma vez aquela grande casa com arcos, que cheirava a estrebaria e a selva e ressoava de cavalgadas, de abordagens, de pequenos gritos de macacos e de papagaios? Com uma pena de galo nos cabelos, o primo Boris e eu declarávamo-nos subitamente inimigos. Emilietta seria a nossa prisioneira. E foi; raptámo-la alternadamente, obrigando-a por vezes a ficar escondida num caixote, durante longas emboscadas imaginárias, aclamando-a rainha do Far-West, rainha do Mato Grosso, que eram os reinos onde Boris atirava o laço e eu esperava atingir com um tiro de Winchester o tigre de bico de águia e cauda de cascavel quando ele passasse.
Mas eu possuía ainda uma felicidade só minha, durante a noite, tremendo de frio no canapé de riscas vermelhas e amarelas, ou quando trepava ao monte de sacos de café para disparar sobre o acampamento de Boris. Excitava-me a proximidade do cinema, apesar de fechado, com os seus cartazes abandonados à entrada; o brilho da máquina de café palpitava dentro de mim como um nó de lágrimas, assim como o vapor angustiante do café brasileiro; depois foi a vez de ver a palavra “cólera”, que o avô agitou, ameaçadora, por cima da sopa, fazer voltar ao meu espírito o terror bíblico dos flagelos que eu conhecera através das histórias do ano anterior sobre o deserto banhado pelo meu pranto das babilónias destruídas.
Na cozinha, durante a noite, ouvia os estrondos do bombardeamento. “O que é um tiro de canhão?”, perguntava a mim mesmo. E parecia-me que devia sair deles um cavalo depois da explosão, um cavalo negro e sem cabeça, como o da minha outra infância de Siracusa, que saía das badaladas da meia-noite e galopava, galopava, na calçada da cidade com um espectro enorme na garupa. E de manhã, ao ir buscar uma tigela de leite, com as mãos nas algibeiras, eu via restos de ferro fumegando no ar silencioso, que me pareciam caçarolas ou frigideiras esquecidas ao lume, de passeio a passeio, depois da orgia de um povo em fuga.»
[Elio Vittorini, Pequenos Burgueses; trad. Maria Manuela Gonçalves, Os Livros das Três Abelhas, Julho 1962]

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