24 de junho de 2013

Nem sempre a lápis (378)

Artesanato
(1966 / 70)
 
Atravesso Coimbra parado na Ponte a atirar pedacinhos de tabaco água.
Há em todo o rio um mistério imenso a terminar no mar.
Penso então em todos os peixes, em todas situações construtivas que emergem dos meus dedos.
Penso que será breve a minha esperança coimbrã, minha correria pelas ruas desertas com o cachimbo apagado.
Penso na solidão da palavra convívio, nesses tipos fixes que escarram vida pelas sanitas abaixo.
Entro no Haeminium com a cerveja a latejar nas fontes da cabeça, e há um grande reencontro com os vidros das montras
espreguiçando-me neles.
Entro no eléctrico com os pés a abanar, dobrando o bilhete entre os lábios, espreitando levemente a cidade, como um sonho filtrado por uma rede metálica:
quadradinhos, quadradinhos.
Sentado no Parque, vejo pássaros com os dentes vibrantes de pasta dentífrica, devorando costeletas panadas, palavras curtas,
abraçando simplesmente as árvores.
Rebentam maçãs por toda a parte: uma guerra a sustentar pelos comedores de flores.
Na Ferreira Borges cresce uma palmeira com folhas de estearina:
julgo que vou outra vez à caça.
Empreiteiros levantam nas pás os monumentos da cidade, a tragédia das auto-estradas.
Descobrem os túmulos soterrados pelos meus passeios clandestinos de motocicleta.
Fico parado no passeio serenamente envolvido pela espuma dos pistons.
É então que, envolto numa imagem psicadélica, me surges tu, José de Matos-Cruz, e apresentas a cidade citando Cafre, de quando em quando.
Paramos na Rua de Saragoça, junto à lavandaria do mesmo nome.
Em frente, um prédio de que apenas me recordo em construção.
Falas-me de coisas várias, de matemática poética, e os carros passam com o destino fugindo-lhes pelo escape.
Despeço-me de ti na certeza de voltar muito tarde pá, quando no Gil Vicente acabar a soirée e, tiritando de frio, esperar por ti à entrada entre a multidão que me olha lacónica, apenas para te dizer que estou de passagem; perguntar se posso ficar essa noite em tua casa.

[in, Alcateia; Hugin, Setembro 1999]

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