14 de dezembro de 2013

Nem sempre a lápis (461)

Memória descritiva
Livro
Tive-os de histórias e para colorir.
Como toda gente que fazia anos, e que acreditava no Pai Natal.
Eram livros enfezados e frágeis, sem futuro.
Empilhava-os no quarto, fascinado com a fronteira esboçada pela sua dimensão infantil, e passei a exigi-los grossos.
A palavra lombada chegaria com as cavalgadas do Buffalo Bill, e pela mão de Os Cinco, descobertos na Gulbenkian.
A partir daí, a minha vida passou a regular-se pelo horário da Citroën de folha-de-flandres.
Como mais tarde condicionaria a minha formação ao & etc. do Lisboa.
Esperava a camioneta com ânsias de namoro, resgatando o suplemento à miséria do quotidiano tolerado.
Entretanto, as lombadas já me tinham posto a salvo da normalidade local.
Com manifesto prejuízo da minha falta de vocação para os desportos físicos.
Não demorei muito a fazer livros.
Primeiro, colei os cadernos diários onde ensaiava a poesia.
Depois dactilografei-a, com pretensões de obras completas.
Deitadas do avesso, as letras esperavam-me nas tipografias, onde fiquei cliente de Gutemberg.
Aprendi a fazer livros e jornais, inalando-lhes a tinta e roçando-me no papel.
As vanguardas despertaram-me para os livros de autor e a art mail.
Usando e abusando das tecnologias da fotocópia, perdi a matriz e vulgarizei a identidade.
Talvez por isso, preciso que me façam livros com cabeça, tronco e membros.
Livros onde ainda é possível ouvir o pulsar impressor, sob o silêncio do e-mail.

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