31 de maio de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...



«As pessoas perdem o nome, as coisas limpam-se, cessam a fuga do espaço e o movimento dispersivo do tempo. Fica um núcleo cerrado. Fico eu.»
(Herberto Helder)

Nem sempre a lápis (372)




(o respeito pelo papiro do dia, impede o lápis e o que mais quer que seja)

Papiro do dia (414)

«Cumprira-se aquilo que eu sempre desejara – uma vida subtil, unida e invisível que o fogo celular das imagens devorava. Era uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical.»

30 de maio de 2013

 

29 de maio de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

ALBERTO CARNEIRO
"MEU CORPO VEGETAL"
«A natureza recriada à nossa imagem e semelhança: nós dentro dela e ela polarizadora dos nossos sentimentos estéticos.
Uma nuvem, uma árvore, uma flor, um punhado de terra situam-se no mesmo plano estético em que nos movemos, são parte integrante do nosso mundo, são um manancial de sensações vindas de todos os tempos, através duma memória que tem a idade do homem.»
Teatro da Politécnica (29 Maio / 27 Julho)
3ª a 6ª das 17h00 / Sáb. das 15h00, sempre até ao final do espectáculo

Às vezes, lá calha...

«Quantas partes tem uma cabeça? Quantas podem faltar debaixo do mesmo nome? Em que momento da queda da guilhotina passa o condenado a cadáver? Em que momento da loucura se ganha o direito a ser chamado louco?»
(Nuno Carmaneiro)
[ora vejamos]

Nem sempre a lápis (371)

(edição policopiada, Coimbra 1972)
 
praias. cigarros. armas. uma tarde de maio. um filme talvez ainda não visto.
qualquer coisa muito breve – música – com armas nas praias
ouves? tem sido sempre isto. toda a tarde.

quando deslizámos pelo cheiro forte do pequeno almoço.
quando partimos, uma noite qualquer, de qualquer noite.

pedras cigarros, praias armas, tarde de maio inventada.
entretanto, nós ainda não estamos mortos.
– ouves? são os mortos amados. o delírio que se segue à fraqueza.

fumo por vocês estes dias. a tua cidade.
porque há uma cidade no meio das palavras – tu me disseste um dia.

essa música, árvore de todas as bocas.
deixem-me passar. tenho frio. veja, estou doente.

com as cores correndo atrás dos dias trespassados por um grito, como um jardim de flores violentas.

um campo abandonado, qualquer coisa decisiva, a espuma, talvez. a ardósia da boca.

aves sonâmbulas que se agitam nas minhas veias. pedras armas. sonho tão breve.
sei para onde tu foste. é bom.

mão aberta para a boca em chamas. corpos delirantes, omnívoros. desengano, insónia, tédio, o peso trágico da tua voz, depois disso:

viviam num oceano com o silêncio dos textos, as gramáticas loucas.
viviam de tédios fáceis criados entre as árvores e as mãos podres.

– nunca antes me apercebera dessa veloz ansiedade. um peso, digamos: a tarde toda à tarde.

estátuas quentes – os gestos – como se de um campo de nomes se tratasse. de uma violenta e terna fome de ti, árvore desta tarde.

não soube nunca voltar-me para a cidade, perceber-lhe as intenções. a música salgada, quando os mortos nos ocupam a memória como estrangeiros inevitáveis.

nunca vi no vento a palavra liberdade.
a cidade levou a voz de cada um.

mar. exílio. a tua voz no sobressalto de outro corpo.
choveu muito durante a minha infância. tardes de maio distante.
– nunca saberei dizer-vos adeus.

uma viola canta nos corredores lentos:
o jardim. o pátio. armas do vento, quando esta música desprevenida nos toca.

é então que se torna violenta a vossa ausência.
é então que é preciso criar palavras, portas, imagens quentes.
– e maio torna-se um mês de uma angústia violenta.

esta ideia cresceu pelo lado de fora dos prédios. habitou as mais longínquas liberdades. deu flor nos sons verdes da minha infância.

ouves o grito da tarde?

sons de uma voracidade atroz. terraços. pedras. memória despertada pelas tábuas proibidas.

mãos atentas em volta de um círculo de camélias geladas.
tudo agonia, vómito sustido a custo.
árvore dentro de outra árvore que não suportou o vento.

ouço a tua tarde no vento da minha tarde. ouço a tua tarde.

os mortos gritam, enchem a memória com a sua verdade alta, com gestos recortados, manchas apodrecidas por outras manchas.

olhamos com terror os lugares vazios, os rostos perdidos:
olhamos o terror dentro da própria tarde.

dentro da cidade devoram-se pequenos peixes de alma exterior.

o que antes tinha vida está agora morto.

– lugares de pesadelo e sonho. lugares sôfregos.

vivemos entre os mortos.
gente morta. que já morreu ou morrerá subitamente durante a nossa lenta morte.

estamos cercados de mortos. pela própria morte. pouco a pouco morremos dentro de nós, embriagados por esse pequeno suicídio íntimo.

porque há uma cidade no meio das palavras – tu me disseste um dia.
quando falavas atravessavas a noite.
se te calavas, outro engenho maior. diferença de pássaro. flor transmudada.

a tua voz rói a minha dentro da tua voz.
a tua voz rói as palavras no caos. elegia precipitada.

o que em ti dá fruto, o que se sabe, é uma palavra cega.
uma tarde de maio, na doca das minhas mãos queimadas.

ardemos para cima. andares de morte, descoberta, fastio.
depois, isso: mudos, quietos, os olhos estoirados de espanto. abismo de reticências.

ouves? toda a tarde. toda a tarde.

primavera da distância, quando o que freme, o que realmente nos incendeia, são as vozes mortas:
praias. armas, cigarros. tardes de maio –
essa borboleta exangue.

bancos das gares por onde passaram.
onde dormiram. os corpos
contagiados pela mesma fome. o mesmo sonho.

vi-os em magotes. os rostos lívidos. drogados.
ou simplesmente nus. o sexo e a mente em chamas.

a morte arde em maio, como uma rapariguinha descobre as mãos:
um frémito de surpresa.

o terror entrou na nossa idade como um exército opressor.
mãos agachadas de sangue, ainda sustiveram alguns dias.

depois foi o pesadelo em marcha:
praias. abundância. monstros vivos.

agora tenho medo. – ouves?
o nosso tempo foi uma joint chupada a intervalos numas águas furtadas.

mais nada. nem saudade nem esquecimento.
nem remorso nem liberdade.

porque há uma cidade no meio das palavras – tu me disseste um dia.
porque há uma cidade, porque há palavras no meio de uma cidade, porque tu me disseste um dia, e havia palavras numa cidade e o meio das palavras, porque tu me disseste um dia
 
[Fruta da época, frenesi 2004]

Papiro do dia (413)

«Uma história são pessoas num lugar por algum tempo. As margens da página, como o silêncio, estabelecem limites certos para que um conto não se confunda com o que não lhe pertence. Pode contar-se uma história enchendo uma caixa vazia ou desenhando paredes à volta de gente.
Esta é uma história de portas adentro.
Tudo se passa numa povoação encostada ao mar a alguns quilómetros de uma cidade média. De Inverno vivem ali pouco mais de dois mil habitantes, entre pescadores, gente pobre, famílias fugidas da urbe e alguns homens estranhos, apaixonados pelo mar ou desiludidos do resto.
Um prédio chegado à praia e um Inverno pesado e frio, de cobertores húmidos e doenças nos pulmões que silvam ao respirar. O mar ouve-se de bravo e, quando não é o mar, é o vento a imitar-lhe a raiva. Dentro do prédio procura-se calor no que há: caldeiras, fogo, corpos e alimento.
A história é contada em oito dias, os últimos sete de um ano e o primeiro de outro. Nada saberemos do futuro e pouco do passado. Nesta história o tempo é medido em medos, um a cada dia, o tempo certo para que homens tremam e mudem.
O medo nasce em qualquer lugar, como erva daninha por dentro. O medo suporta tudo e cresce no escuro até ser adulto, até ser do tamanho de um homem, e lhe tomar o corpo e pensar por ele.
Neste Inverno as gaivotas são gritos com asas. Por estes dias o fogo é frio e anda nas ondas e anda por todo o lado.
No prédio, pessoas em cima umas das outras, divididas por tijolos e cimento, apartadas em apartamentos, para que não caiam e se baralhem as vidas de cima com as de baixo. Pessoas arrumadas como histórias em estantes; só que não é assim, quase nunca é assim.»
[Nuno Carmaneiro, Debaixo de algum céu; Colecção Prémio Leya (2012), 2013]

28 de maio de 2013

26 de maio de 2013

24 de maio de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Pertencia a um pequeno grupo de escritores de terceira e só tinha as suas opiniões a que se agarrar e, como nunca sabia ao certo quem devia admirar, admirava o que as outras pessoas admiravam, o que era, claro, fatal.»
(Sam Savage)

Nem sempre a lápis (370)




Concluída a (inesperada e animadora) prospecção de mercado, toca a limpar os capítulos de até Jajouka, aqui publicados quase na íntegra nos últimos meses, e entregar o material à paciente Inês Mateus. Se o fole aguentar até lá e não ficar muito caro, admito que o texto tenha páginas para andar em edição de autor, numa tiragem nunca superior a uma centena de exemplares numerados e assinados por ele; por mim.
Como os manos anteriores - A cicatriz do ar (ainda há alguns), A mulher descalça (esg., mas com texto "continuado" a aboborar), O livro do fim (contam-se pelos dedos) e o próximo Nem sempre a lápis (edição revista e aumentada) - só disponíveis através da livraria on(a)linhas do blogue.

Papiro do dia (412)

«Foi numa época em que ser autêntico era importante para as pessoas. É interessante como as coisas que parecem óbvias e fazem até parte da atmosfera de uma certa época se tornam inacreditáveis mais tarde – hoje, parece que uma coisa ou uma pessoa pode ser descaradamente falsa que ninguém se importa.
Esta manhã encontrei no frigorífico as uvas que comprei há uns dias, como penso que referi e das quais nunca mais me lembrei, enrugadas mas, de resto, intactas, e comi o saco todo enquanto fazia as palavras cruzadas que trouxe do Starbucks. Não consegui descobrir todas as palavras. Houve tempos em que era frequente conseguir descobrir todas as palavras, mas isso é impossível agora que a maioria se refere a programas de televisão e celebridades que só as pessoas que vêem televisão conhecem – as pessoas que vêem muita televisão, dá-me ideia. Até as palavras cruzadas do New York Times ficaram assim, indecifráveis para pessoas como eu, pessoas com formação literária que não têm televisão. Agora que penso no assunto, suponho que seja esse o motivo. Não me dei ao trabalho de escrever a habitual nota no jornal no outro dia, a avisar que o problema de palavras cruzadas tinha sido arrancado: não sinto qualquer afinidade com o tipo de pessoas que conseguem resolver problemas de palavras cruzadas hoje em dia. Olho para os problemas e para as pessoas, no café, especadas a olhar para os computadores que estão em cima das mesas à sua frente, e pergunto-me, quem são estas pessoas?»
[Sam Savage, As recordações de Edna; trad. Sofia Gomes, Planeta, Janeiro 2013]

22 de maio de 2013

21 de maio de 2013


20 de maio de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«Estou a escrever isto e estou a imaginar-me vista de fora, o aspecto que devo ter para alguém que espreite da rua em baixo: uma senhora de idade de pé à janela, a olhar para o exterior, os braços levantados à altura da cabeça, as mãos encostadas ao vidro.»
(Sam Savage)

Nem sempre a lápis (369)

até Jajouka
(2006)
29. Gostava que este livro, se vier a ser um livro, soubesse a pão e a sal, a peixe frito e a harira, a água fresca e a chá, que as páginas ofuscassem como a prata do mar de Asilah e a luminosidade dos cerros do Rif, cegassem como os campos do baixo, em Agosto, e acendessem trilhos na baía como a Lua Cheia na Fortaleza; fossem impressas a buril nas encostas xistosas das Laceiras e apagadas pelos cascos do gado afugentado por um velho Land-Rover; falassem várias línguas comuns, sem idade nem sotaques, apátridas e abrangentes, que nelas se ouvissem várias vozes numa só voz e ribombassem as trovoadas secas de Maio e de Setembro e os relâmpagos iluminassem as páginas de um rosto apresentado como figura tutelar e exemplar, sem exigências nem cedências recíprocas; fossem rasgadas pelo estertor primário da matança de um porco numa aldeia de Mortágua, pela sinfonia da água a correr de um bica de metal para uma pia de granito, em Salgueirais, pelo silêncio frio da serra do Caramulo e pelo silêncio calcinado dos cerros algarvios; fossem interrompidas pelo canto das popas e abelharucos, riscadas pelo voo rápido das andorinhas, mas sustentando bem alto um predador atento ao mínimo movimento da presa que se protege da canícula; gostava que nelas fumegassem fogareiros de barro e lareiras de sobro e de giesta, cheirassem a forragem segada e a tagine, a chuva e a cães molhados regressados da caça, a pomares devassados pelas abelhas e a vinhas vindimadas, como cheira o teu cabelo quando sais do mar.
Gostava que este livro, se tiver de ser um livro, ao folheá-lo sentisse o toque da tua pele e ouvisse a tua respiração enquanto dormes; permanecesse secreto e inacabado, escrito e reescrito como o livro que me recuso a escrever, onde não houvesse lugar para lugares-comuns e, à falta de melhor, o silêncio se impusesse à previsível conclusão de cada período; fosse um palimpsesto onde latejam outras páginas, em branco e decifráveis, sobrepostas como sucessivas camadas de cal dos montes do Sul e as escamas de ardósia dos derradeiros telhados da Beira, comunicativas e arejadas como açoteias de Tânger e de Asilah; memória amnésica, fronteira de fronteiras derrubadas.

30. (de Setembro)
Já arrumei a mochila e atestei o Land-Rover. Esta madrugada arranco até Jajouka.
[até Jajouka, Monte Alto / Mortágua | Maio / Setembro de 2006]

Papiro do dia (411)

«Quero dizer antes de mais que Clarence era uma pessoa sinceramente afável, embaraçosamente afável, achava eu, quando íamos a festas e ele fazia figuras tristes. Na presença de certo tipo de pessoas – com uma inteligência ou um talento acima da média, ou com muito dinheiro, o género de pessoas que não conseguia deixar de achar bem-sucedidas – sentia-se intimidado, por causa das suas origens e porque ele próprio foi, mesmo no seu age, apenas em parte bem-sucedido, e depois tornava-se odioso ao fim de uns copos, apesar de começar por ser incrivelmente afável, e com “incrivelmente” quero dizer “efusivamente”. Fazia isso porque, ao mesmo tempo que tentava mostrar esse tipo de afabilidade, estava também a tentar defender-se e era frequente acabar a falar daquele modo espalhafatoso, incoerente, que as pessoas acham tão irritante. Curioso era que quanto mais ele se tornava um escritor de festivais mais britânico ficava, embora nunca tivesse vivido na Grã-Bretanha, excepto, como acho que já disse, durante algumas semanas num Verão – britânico na maneira de vestir, na pronúncia, até no vocabulário – e quanto mais bebia mais imperialmente inglês se tornava, até estar bêbedo que nem um cacho e de repente voltar a ser um típico filho da Carolina do Norte. Clarence, quando começava a ficar alegre e a falar sem parar, reparava no meu silêncio de desaprovação e dizia qualquer coisa como: “Pareces muito chateada, miúda.” Eu odiava que ele me tratasse por miúda. Claro que depois arrependia-se. Às vezes, após uma noite a dar espectáculo, quando voltava a ficar sóbrio e eu lhe explicava o que tinha acontecido, encurvava-se a tremer, cheio de remorsos – no chão, por vezes na terra húmida, as folhas e as ervas deixando nódoas no seu casaco – e choramingava de mortificação e vergonha. As ressacas físicas deviam ser também horríveis.»
[Sam Savage, As recordações de Edna; trad. Sofia Gomes, Planeta, Janeiro 2013;

18 de maio de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Sem a presença visível de adversários,
os músculos preparam, meticulosamente, a própria derrota.»
(Gonçalo M. Tavares)

Nem sempre a lápis (368)

até Jajouka
(2006)
28. Esta manhã, creio ter feito as coisas como devem ser feitas: deixei a Olga em Portimão, vim pelo Parchal – bebi outra bica, enquanto enrolava quatro cigarros – e levantei cem euros no Multibanco; passei no cruzamento de Porches para o Monte Alto caladinho que nem um rato e entrei naturalmente na Via do Infante, em Alcantarilha, sem ser assediado pelas habituais ruminações se tivesse entrado em Lagoa e, com o mar azul a brilhar à minha direita, percorri bonacheironamente os cento e cinquenta quilómetros até Huelva, apenas atento ao manómetro do gasóleo e da temperatura deste jipe a que ainda não me habituei – e tive de largar dois mil e quinhentos euros para substituir a Azulinha, a Volvo 245; só lhe faltava falar, caraças – e não faço a menor ideia de quanto tempo precisarei, nem de quanto dinheiro que não tenho para gastar com a educação deste Cherokee teenager, nome e cor de xarroco. Verifiquei, surpreendido e simultaneamente incrédulo, que o arco à entrada da ponte sobre o Guadiana foi finalmente substituído por um fundo marítimo, mais cúmplice com o que encontrou quem sai do Algarve, do que o prepotente relvado que ali permaneceu dois anos, se não estou em erro, substituindo a discutível e crescente realidade dos campos de golfe por um interminável estádio de futebol a que parecem querer condicionar-nos; em cada casa e em cada carro, bandeiras ao vento. Mantendo a velocidade que me permite divagar sem perigo, cheguei a Huelva sem sobressaltos – além da habitual rajada de mensagens no telemóvel, onde o big brother, a pretexto de me fornecer não sei que espécie de informações não solicitadas, está pura e revoltantemente a controlar-me e a dizer «Com que então, em Espanha, seu maroto…» –, confirmando o preço mais baixo do gasóleo, e estacionei, como habitualmente, no parque Damas – embora duvide que se possa estabelecer qualquer analogia entre o nome da empresa de autocarros e o livro do Mário Zambujal, Primeiro as Damas –, depois de ter subido o silo até ao sexto piso, onde arrumei logo à primeira, sem me debater com a natural preguiça para fazer manobras. Enganei-me no elevador e saí para a rua do lado oposto à que me convinha e conduz directamente à Librería Saltés, parando primeiro numa loja de artigos fotográficos, onde também não tinham um rolo para a instamatic (quando precisei dela, verifiquei que a tinha deixado no jipe) e entrei na tabacaria ao lado onde, feitas as contas, poupei em dez onças de tabaco o suficiente para o parque de estacionamento e o almoço, a encaminhar-me determinado e transpirado para a livraria, a fumar o quarto e último cigarro enrolado no Parchal (bem me parecia que bastam quatro para fazer o percurso), onde entrei com o dedinho espetado que (sem dificuldade de monta) retirou do expositor o ambicionado Entre paréntesis de Bolaño, e aproveitei para encomendar La ciudad ausente de Piglia – evitando, assim, o confronto do Land-Rover com o trânsito sevilhano quando por lá passar a caminho de Jajouka –, garantindo à morenaça que me atendeu que não tinha pressa e pode comunicar a chegada durante o mês de Setembro, como prometeu. Livros para traduzir não me faltam, até Dezembro e, no intervalo, leitura de sobra por conta de Bolaño, como não tardaria a verificar. Saí para a rua ocupada por viveiros de pernocas douradas (claro que olhei) que mais pareciam apeadas de cartazes a anunciar as virtudes do ozono da Isla Canela, e sebes de pernões de moças da minha geração empoleiradas em cima de chinelas periclitantes e com aquele ar meio atarantado da menopausa, creio, e atalhando pela rua pedonal para não cair na tentação de me sentar numa esplanada a folhear o Bolaño, dirigi-me ao mercado por vielas coloridas, com os olhos a cobiçarem dois ocres revelados por uma demolição e a luz do meio-dia (hora de Portugal), e entrei no mercado pelo lado oposto ao habitual, dando rédea solta ao olfacto atordoado pela bordoada das frutas e dos legumes, os sacos de cominhos e açafrão, evitando as bancas de peixe vivo que não podia trazer, mas comprei lombos altos de bacalhau de fazer crescer água na boca, e estava com uma sede que nem vos conto, figos, pimentos e cebolinho a um euro o quilo, o tomate a sessenta cêntimos, saindo pela porta habitual para me sentar no Alba e poisar os sacos que me cortavam as mãos, enquanto pedia uma tapa de pescada frita fresquíssima, com um quarto de limão e meio litro de água, entretendo-me finalmente a abrir Entre paréntesis, lida a contracapa e escolhido o texto que dá o título ao livro, «El narrador en la intimidad», onde li «A minha forja [cocina, no original] literária é, frequentemente, uma divisão vazia, onde nem sequer há janelas. (…) Confrontado com estes dilemas, geralmente faço o que faz toda a gente: perco o equilíbrio e penso que sou imortal. Não quero dizer imortal literariamente falando, porque isto só pode sê-lo um imbecil e não sou homem para tanto, mas literalmente imortal, como os cães e as crianças e os bons cidadãos que ainda não adoeceram.» Saboreada a pescadinha, e porque o Alba faz questão de só servir café durante as horas que lhe justificam o nome, fui tomá-lo, servido num eterno copo de vidro, sentado à janela de um café decorado com cabeças de dois supostos Miuras e uma exposição antológica de cartazes de touradas, de Huelva e das redondezas, uns mais recentes e outros a tresandarem à Espanha do pós-guerra, onde fui abordado por dois ciganos muito interessados na minha caixa de enrolar cigarros, dizendo-me que era uma maravilha para enrolar porros, joé! (charros, não vá o leitor não saber), como quem diz, «E que tal uma troca?», mas o que eles sabem já eu me esqueci, e informei-os que as vendiam na tabacaria onde antes comprei o tabaco (saindo-me o parque de estacionamento e o almocinho de borla, mas creio já ter dito isto, desculpem), insistindo o mais teimoso – com o cabelo encaracolado à trolha (sem ofensa) a brilhar como se o tivesse penteado com azeite (de Jaén?) – em vender-me um espampanante cachucho dourado, ao que respondi esticando a singela anilha de prata que me caracteriza o dedo mindinho e, finalmente enrolados quatro cigarros (está mais que visto que são os necessários) e bebido o café, bebido o portuguesíssimo vício da bica, dirigi-me ao parque recusando-me terminantemente a ver a tal parede que só me apeteceu assinar, eu que raramente assino o que pinto, desci e abasteci o Xarroco na estação de serviço à saída de Huelva, decidido a chegar a casa e escrever este texto que transcrevo praticamente de cor.

Quando passei a ponte sobre o Guadiana, fui saudado pelo cartaz que anuncia o Algarve e, imediatamente a seguir, insultado pelo cartaz – primeiro os fogos, depois os projectos de prevenção e reflorestação – com que me entretive a calcular os milhares de euros gastos com a abertura do concurso, publicação, análise de propostas, impressão, distribuição e colocação, à medida que o mar, agora à minha esquerda, se apresentava mais baço e o piso da estrada mais trepidante, como se estivesse preocupado em despertar-me da modorra que se ia apoderando de mim, até que finalmente saí na rotunda de Alcantarilha, aquela que normalmente uso e está visto que devo usar sempre, e parei lá em baixo, no poço, para abrir a caixa do correio – onde me esperava um livrinho (mais uma tradução, mas do mal o menos) –, subi todo contente a pequena colina até ao Monte Alto e arrumei o jipe sob o coberto das buganvílias sem que os canitos dessem por mim, até chegar à porta e saltarem-me em cima como se não me vissem há uma eternidade, e satisfeitas as merecidas e devidas atenções e mudada a água dos bebedouros, arrumei rapidamente as compras, decidido a fazer uma surpresa à Olga quando chegar a casa, com um jantarinho debaixo do telheiro para lhe contar ainda mais histórias, absolutamente convicto de que, embora hoje não tenha traduzido a ponta de um corno (também preciso de descansar de vez em quando), sinto-me absolutamente convicto de que hoje, finalmente, fiz a coisa como deve ser feita.

Papiro do dia (410)

«Da mão direita à outra do mesmo homem vai por vezes uma distância obscura. Não se trata de uma parte esconder intenções ou até acções. É outra coisa.
Quando, para receberes alguém, abres os braços, a referida distância aumenta e a mão, em cada ponta, assinala um certo modo com que o teu corpo se dispersa. Quando o abraço se concretiza e nas costas do outro as mãos finalmente se reencontram, formalizam um símbolo ao mesmo tempo desolador e esperançoso: é que só nas costas do outro as tuas duas partes se unem com uma energia digna de admiração. Experimenta, sem outro corpo no meio, unir com força, com violência até, as tuas mãos, e verás o ridículo, perceberás a diferença de intensidade.
Mas por vezes – como bem sabes – não há outro corpo.»
[Gonçalo M. Tavares, Breves notas sobre o medo; Relógio d’Água, Maio 2007]

16 de maio de 2013

Apanha malhas
«... pediu ao balcão o livro do último prémio Leya. Andaram por ali, largando comentários sobre a essencialidade da literatura nas suas vidas e mostrando a sua relação íntima com os livros. Até que a mais gorda, arrebitando a crista, abanando o pelancame vermelho da barbela, olhou em redor e cacarejou assim ”Eu, se pudesse, levava a livraria toda!”. Saí, claro está. Fui enfiar-me numa loja chinesa a comprar collants. São mais baratos, a qualidade do fio é a mesma e as cores têm nomes bonitos: muskade, duna, tropical.»
 

14 de maio de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia


Às vezes, lá calha...

«A sua voz é repentina e grave, quase rude mas não muito alta. É como se ela não tivesse estado à espera de fazer tanto barulho ao falar.»
(William Faulkner)
[oh...]

Nem sempre a lápis (367)

até Jajouka
(2006)
27. O início do quarto crescente – com a Lua resumida a uma unha roída pendurada no lusco-fusco, a anteceder o gradual e perturbante esplendor da lua cheia – é um dos motivos mais estimulantes para pegar na cadeira de tabua e sentar-me lá fora para me esvaziar do esforço de ter cumprido mais um dia. Os outros são os infindáveis crepúsculos vistos daqui.
Partilho, como toda a gente, memórias inesquecíveis de crepúsculos e luas cheias que me colheram nos sítios e situações mais inesperadas. Para não falar dos que procurei, chegando a percorrer quilómetros, como tanta gente, para me sentar numa praia, numa falésia, no cimo de um cabeço, com a mesma ansiedade e entusiasmo de quem se desloca a um espectáculo, a um concerto único e intransmissível. Estou a lembrar-me, por exemplo, dos Police no estádio do Belenenses quando, um pouco antes do espectáculo começar, toda a gente viu uma rulote de bifanas descer a avenida levada em ombros pela torrente humana literalmente, walking on, walking on the moon e, já sentado nas bancadas de frente para o rio, vi, como toda a gente viu a Lua cheia poisar sobre o palco, ao mesmo tempo que passava um cargueiro, na mais fantástica, real e inesquecível montagem; com uma precisão que nenhum espectáculo multimédia, como então começava a estar em voga e hoje julgo repetirem-se até à exaustão dos efeitos especiais, jamais se poderia dar à vulgaridade de sincronizar.
Mas, se nesta situação as testemunhas, felizmente, abundam e é (era) frequente encontrar pessoas com quem, a meio da conversa, nos sentíamos subitamente ligados pela mesma corrente que electrizou o estádio do Belenenses, infelizmente, tive de me aguentar sozinho com as labaredas de uma lua cheia que pareciam incendiar o montado à volta de Terena, quando regressava a Reguengos de Monsaraz depois de jantar no Alandroal e ter ido até Badajoz só para passar o tempo. Inconscientemente, começava a sentir-me manifestamente incapaz de continuar a fingir que me interessava o tipo de convívio, a que então me forçava a actividade como responsável pelo gabinete de imprensa da prova alentejana de todo-o-terreno.
Sim, também passei por essas; entre outras.
A Lua surgiu-me inesperadamente ao nível do chão calcinado do montado; que eu quase jurava ter visto revolto e empoeirado pela surpresa, revelando as árvores espectrais no contraluz avermelhado de uma incomensurável câmara escura. Só tive tempo de corrigir a trajectória para não ir parar à valeta, enquanto me debatia com uma inexplicável (para mim) falta de rede das operadoras nacionais, abafadas pelas suas potentes e úteis congéneres espanholas, que me impediu de tentar partilhar o espanto, a surpresa com a Olga que, àquela hora, devia dormir absolutamente alheia às minhas habituais e imprevisíveis digressões nocturnas de antanho.
Não senti a ausência de um ou dois anos antes, quando despertei e dei por mim com o carro a trabalhar, à beira da estrada entre Saragoça e Barcelona, em plenos Mons Blancs. Ainda hoje, não me lembro do motivo que me levou a atirar com o carro para a valeta, e muito menos quanto tempo assim estive, até voltar a sentar-me ao volante e percorrer os restantes quilómetros que me separavam de Barcelona, entretido a brincar às escondidas com a Lua, que não me lembro se estava cheia ou se se esvaziava, como eu mais tarde comecei a desconfiar que me esvaziava de um determinado tipo de vida. Demorei alguns anos a contar este episódio à Olga, talvez porque «ninguém sabe explicar ao certo o que se passa connosco quando se abrem as portas que escondem os terrores da nossa infância», se é que Austerlitz não se enganou, e o mesmo se pode dizer de quaisquer portas da nossa existência, presente ou futura.
Saímos do Monte Alto com a melhor das intenções de irmos ver a Lua a Sines, decididos a não perder o Festival de Músicas do Mundo – agora já não havia desculpa, com ou sem os Master Musician of Jajouka –, percorrendo a velha estrada litoral a partir de Lagos, fazendo o percurso inverso ao que me revelou o reino do Al-Gharb, há cerca de trinta e cinco anos, sem que eu pudesse adivinhar que viria a viver exactamente a meia dúzia de quilómetros do Carvoeiro, que serviu de pretexto para arrancar de madrugada de Coimbra, rumo ao Sul. Enquanto a Olga sorria, a ver-me guardar o bloco e o lápis e a instamatic na mochila, para o que desse e viesse, prudentemente foi arrumando as toalhas e uma garrafa de água para o que veio: duas horinhas de praia na Amoreira, a catar pedras e a reviver histórias, a dar banho à nossa rotina.
Quando chegámos a Sines, estacionei sem dificuldade atrás do palco montado na marginal sob a falésia, onde se degrada, entregue ao vazio ou à indecisão tão habitual entre nós dos herdeiros, não sei, a casa que conheço como sendo a do avô do Al Berto. Sem me deixar abalar pelo medo das janelas vazias a olharem desorbitadas o entardecer, lembrei-me, inevitavelmente, de ali termos estado quase todos os que deram corpo às primeiras folhas volantes frenesi, então expostas no Centro Emmerico Nunes, onde fui ter com eles como jornalista do Diário de Lisboa limitado a meia dúzia de bytes. E enquanto ouvia a electrizada e electrizante saharauí Mariem Hassan, os meus olhos deliciaram-se a ver os netos que não tenho e os filhos que não tive, juntamente com os companheiros que fui perdendo pelo caminho, ou nos separámos na encruzilhada onde enveredámos por outro caminho, reconhecendo-nos na cumplicidade de um olhar onde já não há lugar para o medo.
E a Lua?
A Lua espreitava-nos por entre o cotão de curvas desde o Cercal até à entrada de Odeceixe, como se viajássemos dentro deste velho texto, escrito na Hermes 2000 que herdei do meu avô:

«Tenho uma visão (a cores) para António Reis:
sigo por um caminho velho, sob um azul forte. Ao longe, há uma povoação dos meus contos infantis e, indistintamente, de uma gravura antiga. O pó levanta-se atrás de mim, para onde vejo, e ouve-se o malhão. Se parar, cessará imediatamente, sei-o de um pavor anterior à visão. Nesse silêncio, ouvir-se-á o matraquear da Hermes 2000, que vem de cima e está fora de campo, embora se ouça ininterruptamente. O azul vai-se pondo, e quando regresso - trôpego, com a madrugada - mantém-se ao longe o arraial para onde vou.»*

A Lua espreitava-nos por entre os cerros do Cercal ate à entrada de Odeceixe, onde ainda subsistem, heróicas e feridas – o presente dedica-se a correr o passado à pedrada – as placas que insistem em indicar as desactualizadas distâncias que já não me separam do Algarve.

Papiro do dia (409)

«Ele pensa calmamente: “Eu não deveria ter perdido o hábito de rezar.” Depois já não ouve os passos. Agora ouve unicamente os numerosos e intermináveis insectos, encostado à janela, respirando o cheiro quente e ricamente maculado da terra, pensando em como ele tinha amado a escuridão enquanto era jovem, um jovem que andava ou ficava sentado sozinho entre árvores, à noite. Depois o solo, as cascas das árvores, tornaram-se verdadeiros, selvagens, repletos, evocativos, estranhos e desgostosos meios prazeres e meios horrores. Tinha medo disso. Temia; amava tendo medo. Depois, um dia no seminário, descobriu que já não tinha medo. Era como se uma porta se tivesse fechado algures. Já não tinha medo da escuridão. Simplesmente a odiava; costumava fugir dela para a proximidade de paredes, para a luz artificial. “Pois é”, pensa ele, “eu nunca deveria ter perdido o hábito de rezar.” Afasta-se da janela. Uma das paredes do escritório está forrada de livros. Pára em frente a eles, procurando até encontrar aquele que procura. É de Tennyson. Está deformado por um uso abundante. Tem-no desde o tempo do seminário. Senta-se debaixo do candeeiro e abre-o. Não demora muito. Em breve a linguagem fina e galopante, o definhar desvitalizado repleto de árvores sem seiva e luxúrias desidratadas começa a pairar meloso, veloz e pacífico. É melhor do que rezar, sem se dar ao trabalho de pensar em voz alta. É como ela não tivesse estado à espera de fazer tanto barulho ao falar.»
[William Faulkner, Luz em Agosto; trad. Jorge Telles de Menezes, Bibliotex, 2003]

13 de maio de 2013

C'os pés prá cova, alguém lá iria

Pelo cano


12 de maio de 2013

11 de maio de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

edição reguila na Guilherme Cossoul
(ontem e hoje e porque não, sempre?)

Às vezes, lá calha...

«E a memória sabe isto: vinte anos depois, a memória acredita: “Foi naquele dia que me tornei um homem.”»
(William Faulkner)

Nem sempre a lápis (366)

até Jajouka
(2006)
 
26. Entretido à espera de arrancar até Jajouka, lembro-me que a imagem mais agradável – praticamente, única e indelével – que conservo da minha excessivamente longa permanência em Lisboa, é a de um vulgar entardecer, no final de Setembro ou princípio de Outubro de 74, com um banco sob a copa de uma árvore enorme, logo no começo do jardim do Príncipe Real, vindo do Rato.
Tinha um quarto ali perto. Enquanto pude, recusei ter uma casa e deambulei pelos mais variados quartos – de pensões, alugados, emprestados, vagamente partilhados, cheguei a dormir com a Nico no armazém da & etc., um antigo estábulo de fidalgos na rua da Emenda –, até à iminência do nascimento do Diogo. Só em Dezembro de 76 alugámos o opressivo e deprimente 7.º andar em Carnaxide, Praceta Gomes Leal, onde cheguei a alimentar a esperança de me sentir em casa; a compra, forçada, uns dois anos depois, gorou todas as possibilidades de me sentir em paz e integrado numa casa, como me sinto aqui, no Monte Alto.
Tinha um quarto ali perto, numa das ruas do quarteirão que delimita um outro jardim – o das Amoreiras, pelo qual não nutria especial simpatia, talvez pelo risco de tropeçar nos inteligentes que conspiravam num bar da zona –, e quando acabava o período de reclusão no edifício da antiga Emissora Nacional, no cruzamento da Duarte Pacheco com a Artilharia 1, gostava de descer a pé até à Livraria Opinião, à cervejaria da Trindade e, raras vezes, até à Brasileira do Chiado, a saborear uma Lisboa ainda semi-adormecida, mas com as paredes já irreversivelmente tatuadas pela fulgurante passagem da revolução.
Admito que possa ser uma mania minha, uma obsessão, uma perspectiva de lesa-majestade, por insistir em considerar que o 25 de Abril durou a estupefacção e explosão de alegria que decorreu entre essa manhã e a tarde do primeiro 1.º de Maio; a tarde em que a Revolução foi loteada, adeus ó vindima. Fui variadíssimas vezes ameaçado e apelidado de tudo e mais alguma coisa que, concedo, só o delírio febril que então se vivia poderá justificar. O futuro encarregou-se de comprovar, para mim foi inequivocamente revelador do verdadeiro íntimo das tais excrescências revolucionárias que, também elas, foram determinantes para os compadres da Alameda lhe lavrarem a certidão de óbito, oficializada e tornada pública com o tétrico e vagamente chileno 25 de Novembro. Vagamente, porque nos ficamos sempre e em tudo, apenas pela encenação, artesanal e barata, mais por amor à camisola do que verdadeiramente ao corpo que, como se sabe, deve ser quem mais ordena.
Eram caminhadas deliberadamente lentas – alheias a qualquer desconhecido pretensiosismo walseriano –, não só porque não sabia nem queria ter nada para fazer, mas sobretudo para saborear as montras das pequenas mercearias, cafés, drogarias, cabeleireiros, retrosarias e tascas que, a partir da tríade habitual, constituída por antiquários, lojas de decoração e a galeria de arte (muito dada aos surrealistas e onde vi desenhos de Michaux), começavam a transmitir vida vivida à rua. Ela ainda era percorrida pelo vaivém ronceiro dos eléctricos apinhados de gente e mãos-leves, para rabos e carteiras, com penduras nos estribos de um eléctrico que se prezasse, sem que o revisor jamais se atrevesse a repreender esses camaradas; revisores e penduras, encontravam-se todos, mas todos ao lado do povo. Essas caminhadas, quando saía com entrada condicionada, por me encontrar detido pelo trabalho na E. N. logo a seguir ao 25 de Abril, começavam, invariavelmente, por me abastecer com um copo, demorado e autista, sentado – quando não ocupada pelo casal residente, a Paula Almada Negreiros e o Álvaro Cabeça de Vaca – à mesa de pedra junto à janela da taberna na esquina do largo do Rato com a rua de São Mamede, entretanto travestida de não sei quê, porque fizemos sempre questão de manter a fachada.
Nessa tarde, a tarde em que me sentei num banco sob a copa de uma árvore enorme do jardim do Príncipe Real, sentia-me possivelmente radiante por ter apanhado o elevador para o refeitório e ter sido alvo de provocações de elementos do MRPP, ter subido do refeitório e ter sido alvo de provocações de elementos do PCP, sendo a ordem absolutamente arbitrária e entediantemente repetitiva sem que alguma vez me desse por achado. Encontrava-me ainda deslumbrado pela facilidade com que tinha chegado à cidade e arranjado um emprego vistoso, não os conhecia de lado nenhum e recusava-lhes qualquer espécie de proximidade, escolhendo cuidadosamente a mesa onde me sentava, preferencialmente sozinho, a almoçar. Nessa altura, e se é que ainda tinha dúvidas quanto à minha ocupação, o Vitor [Silva Tavares] ficou ao corrente até que ponto eu fazia de conta na E. N. Lembro-me que era sábado e me tinha calhado o castigo rotativo de ficar a olhar para os jornais e a olhar para a rua, empoleirado num estirador quatro andares acima do passeio da Duarte Pacheco, quando ele me telefonou, muito excitado, a perguntar se eu sabia alguma coisa sobre uma tal silenciosa Manifestação Silenciosa. Jurei-lhe, a pés juntos, não ter ouvido nada; absolutamente nada.
Descia eu esse demorado percurso – que me separava da agreste incompatibilidade com a realidade para me entregar progressivamente na imensidão do devaneio ao entardecer, como jovem poeta que era – quando, percorridas talvez centenas de vezes o mesmo irrepetível percurso; quando terminado o pano de casas onde a rua cede o nome ao jardim, dei com o tronco levemente tombado e as raízes mais ansiosas pela secular autonomia a aflorarem o chão, num esforço irreprimível que levantava a calçada do passeio. Possivelmente, esperei que os automobilistas desrespeitassem a prioridade dos peões, admitindo que me tenha dado jeito prolongar o sabor da chegada, como os passageiros aguardam que o navio atraque e encostem a escada ao portaló; a manga seja acoplada à fuselagem do avião; o comboio pare e as portas se abram com um silvo pneumático, e só depois percorri os poucos metros de asfalto listado para me sentar no banco vazio que me aguardava sob a copa de uma árvore enorme do Príncipe Real.
Era um velho banco com ripado de madeira, assente numa estrutura de ferro fundido pintada de verde ou alumínio, igual aos bancos que faziam parte do mobiliário urbano de uma Lisboa provinciana, onde se pretendia que os costumes eram brandos, mas o Império embravecido desmoronava-se a olhos vistos, sem necessidade de assomarmos à rua da Misericórdia para nos compadecermos com o vazio do rio. Aproximei-me dele como dois desconhecidos com encontro marcado se reconhecem à medida que entre eles diminui a distância e a reserva inicial, e sentei-me sensivelmente a meio, abrindo os braços como se avaliasse a dimensão do assento e os meus dedos procurassem decifrar nos veios de madeira descuidada, sinais ou memórias que o dourado do entardecer ajudasse a reconhecer, encaixilhadas para o futuro. Permaneci ali até o banco e eu darmos por terminado, saciado o tempo que, possivelmente, ambos necessitávamos, sem darmos pela diminuição do trânsito, das filas para o eléctrico e para o autocarro; sem nos apercebermos que o lento violeta dos candeeiros cedera ao amarelo coalhado que iluminava a noite; noite da tarde em que não desci até à Livraria Opinião, à cervejaria da Trindade, menos provável ainda à Brasileira do Chiado, como se, inconscientemente, antecipasse a leitura de um livro de John Berger, onde viria a compreender que, também eu, esperava que «dentro de uma ou duas semanas, África, que começa, digamos, na outra margem do Tejo, começasse a impor a sua presença, distante, mas palpável.»

Papiro do dia (408)

«A consciência, não o sofrimento, traz-lhe à memória milhares de ruas solitárias e abandonadas. Elas começaram a correr desde aquela noite em que estava estendido no chão quando ouviu o último passo e depois a última batida da porta (eles nem sequer apagaram as luzes), e depois ficou deitado, calmamente, de costas, com os olhos abertos enquanto por cima o globo suspenso ardia com um brilho fixo e doloroso, como a luz de uma casa onde toda a gente tivesse morrido. Não sabia há quanto tempo se encontrava ali. Não pensava de todo, nem sofria. Talvez tivesse consciência de que algures, no seu íntimo, os dois terminais desunidos dos fios da vontade e da sensibilidade, agora sem contacto, esperavam restabelecê-lo, unir-se de novo para que ele pudesse mover-se. Enquanto acabavam os seus preparativos para partirem, os outros passavam de vez em quando por cima dele, como pessoas que estando prestes a deixar uma casa para sempre passam por cima de um objecto qualquer que tencionam deixar para trás.
Depois, desapareceram: o passo final, a porta final. Depois ele ouviu o carro abafar o ruído dos insectos, pairar por cima dele, baixando depois de nível, ficando mais baixo do que o nível dos insectos, de forma que por fim ele só ouvia os insectos. Estava ali deitado por baixo da luz. Ainda não se podia mexer, do mesmo modo que podia olhar sem ver, ouvir sem ter consciência; os dois terminais ainda desunidos enquanto ele estava estirado calmamente, lambendo de vez em quando os lábios, como fazem as crianças.»
[William Faulkner, Luz em Agosto; trad. Jorge Telles de Menezes, Bibliotex, 2003;
por vezes um puro é apenas um charuto]

10 de maio de 2013

Puxar a brasa à sarda

 
[lá para Setembro, se correr bem]

8 de maio de 2013

Breve interlúdio musical




Porque a Net fornece um novo dia

[éclogas do Trombas]

Às vezes, lá calha...

«O olhar dele tornou-se quase humano e começou a olhar em volta do quarto, como se nunca tivesse contemplado antes um quarto de mulher: um quarto fechado, quente, desarrumado, com um suave odor feminino.»
(William Faulkner)

Nem sempre a lápis (365)

até Jajouka
(2006)

25. E de repente, bloqueio. Abro o e-mail, onde um link me direcciona para o blogue da frenesi [entretanto desactivado] e bloqueio, literalmente soterrado por uma imagem vagamente esquecida; tenho uma cópia mas não faço a menor ideia por onde possa andar. A foto fala por si, e pode ler-se nas expressões dos artistas, como nos chamou o artista que fez questão de posar connosco para a posteridade, o que ela nos reservou.
«Inverno de 1975 – De pé: o desenhador Nuno Tabaquinho, um desconhecido ocasional à hora do “metro operário”, Jorge Fallorca o portador do estandarte lendário. Na primeira linha: João Ruas, António Coelho, ou Tó Coelho (falecido recentemente), Paulo da Costa Domingos.»

Segundo o horário estabelecido na legenda, a foto documenta uma habitual directa de charros e muita criatividade, do lado oposto de uma estação de metro que já não existe ou sufocaram-lhe o grito. Suponho ter sido tirada pela Margarida Lagarto, a musa inspiradora do Tabaquinho. Conduzia-o à trela e ele aproveitava a ausência dessa fada mazinha da casa onde vivíamos – onde sobrevivíamos – na rua Gomes da Silva, ao bairro do Arco do Cego, para se vingar da imagem que cultivavam, como um puto mimado e mal-educado. Até fazia dó. Corneava-a como um obsessivo, com toda e qualquer vassoura de saias, na alcova artística donde pretendiam transmitir a imagem de uma relação obviamente diferente dos flutuantes residentes e frequentadores desse sótão. Muitas vezes, quando entrávamos éramos obrigados a fazer uma autêntica gincana entre sacos-cama que ressonavam ao cimo da escada e no corredor; a fazer ouvidos de mercador aos gemidos dos casais que apareciam por lá especificamente para dar uma foda que, por vezes, partilhavam reconhecidos com a famosa hospitalidade da malta da Gomes da Silva. Mas na Gomes da Silva não se swingava, tínhamos apenas aquele swing natural de estarmos permanentemente pedrados.
Olhando a foto, confronto-me com uma torrente de imagens que me interrompem o curso do texto. Não sei se comece pela casa, o sótão – que durante algum tempo explorou a fama de ter dado guarida ao Vaneigem ou outro dos situacionistas que vieram fazer turismo político até ao 25 de Abril – numa altura (o famoso Verão quente) em que tudo o que eu pretendia era voltar as costas a uma encruzilhada. (...) Francamente, não sei por onde começar, ou até mesmo se deva começar, porque «ainda hoje há algo de ilusionista e ilusório na relação com o tempo e o espaço quando viajamos e é por isso que, cada vez que regressamos, não temos bem a certeza de termos realmente estado fora», recorda-me Austerlitz. É certo que quando regresso sinto-me ainda mais estupefacto por encontrar tudo absolutamente na mesma, como se permanecesse estagnado e alheio ao tempo em que me excluí.
Na Gomes da Silva, como era familiarmente denominado esse sótão no bairro do Arco do Cego, quando me mudei para lá ainda era palpável o conflito entre a memória de comunidade deixada pelo clã que a particularizara e os costumes impostos pelos novos bárbaros. Uma das coisas que me surpreendeu, e surpreendia quem lá ia, era que as portas de cada quarto, de cada cela, estivessem fechadas a cadeado, em flagrante desrespeito pela privacidade de uma porta fechada; à chave ou não. Enquanto o Tó Coelho, por exemplo, assegurava a continuidade dessa memória sem cadeados, o João Ruas, que nunca cheguei a perceber quem era na realidade, rapidamente viria a desempenhar o papel de guru, trazido pela mão do Tabaquinho e especialmente receptivo a guias culturais e novidades. Sobretudo as importadas e ainda a cheirar a carimbo no passaporte, na medida do possível vindas de Paris e observadoras in loco do Maio de 68.
Mas talvez seja melhor pegar em cada um dos artistas e tentar descrevê-los tal como os via ou nos vemos, naturalmente disfarçados, tanto mais que sou o autor do texto.
O estudante de Belas-Artes Nuno Tabaquinho, ilustrou o hors-texte do meu primeiro livro (Imitação da Morte dos Outros) com capa do Carlos Ferreiro editado pela & etc., praticamente na véspera de abandonar a Gomes da Silva de braço dado com a Olga e o nosso filho na barriga, decidido a meio dos Concertos para 2 Cravos, J. S. Bach. Contam-se pelos dedos de uma mão, e sobrarão, as vezes que voltei a vê-lo. Retenho apenas duas situações: um encontro num restaurante de Entre Campos, onde a neblina do álcool me impedia de ver como ele se debatia com uma manada de garranos nas veias; e um pouco mais tarde, quando já libertado das miragens etílicas, o vi tentar abrir-me a porta do carro para me cravar uma nota, que eu também não tinha, num semáforo da mesma zona da cidade. Muitos anos depois, parámos acidentalmente em Estremoz para beber uma bica numa pastelaria. Dando-nos a entender que nutria por ele uma condescendente ternura, a empregada não nos soube dizer se concretizara ou não o projecto de ir dar aulas para São Tomé – decisão a que (também) não era alheia a tentativa de continuar ou finalmente comer uma ex-colega da Olga, visita lá de casa –, acrescentando, com aquela naturalidade alentejana a quem não perguntou mais nada, «que ele estava muito melhor, embora tivesse dias que era uma pena. Mas sempre muito brincalhão», fez questão de frisar.
A segunda figura, o verdadeiro artista, não faço, nem nenhum de nós fazia a menor ideia de quem fosse. Recordo-me apenas que o metro estava ainda consideravelmente vazio àquela «hora operária», o que talvez nos tenha permitido entrar na estação devidamente caracterizados, e ele terá visto a possibilidade de chegar ao emprego, impecavelmente penteado e com o jornalinho dobrado, com uma belíssima história para contar aos colegas: que tinha entrado num anúncio?, num filme?, num beco sem saída? Não faço ideia e lamento que não tivesse podido levar uma cópia da foto para provar aos colegas que era verdade o que dizia, mas não teria evitado que lhe fizessem a cabeça em água durante algum tempo, até ele mesmo, admito, começar a duvidar se pousou ou não na foto onde o vemos.
É o único que não está disfarçado, o único que não faz de conta, ao contrário de mim, por exemplo, que me encontro devidamente disfarçado de funcionário público e identificado com o cartão da Emissora Nacional – ou seria já RDP, onde continuei mais de uma dezena de anos a fazer de conta? – na lapela de um casaquinho de ganga oferecido pelo Ferreiro em Paris, fazendo questão de não abrir o bico; tudo o que tinha a dizer resumia-se a um premonitor balão em branco.
Eles que escrevam, eles que digam.
Na primeira linha de baixo, com a sua proletária samarra e uma oportuna pala de pirata num olho, que não me lembro se já trazia com ele ou não, o João Ruas, acocorado com umas blue-jeans e botas caneleiras que não vemos, num antecipação filosófica de Bruce Springsteen dos anos setenta. Poucas semanas depois fomos a Paris, fornecendo eu o carro e uma quota-parte para o Ruas comprar erva, que se encarregou de vender e fumar aos e com os amigos, e eu estafei a minha percentagem com uma artista de St. Denis e uma série de livros, discos e tabaco de cachimbo que me tinha ficado no goto quando lá estive em Setembro de 74, em casa do Ferreiro.
Nunca fui grande espingarda para os negócios, é um facto. Cedi o carro, prensámos mais de um quilo de erva numa espécie de bolacha, de pizza a tresandar a resina na oficina do meu pai, quando passámos por Mortágua a caminho de Vilar Formoso. Na fronteira, havia fronteiras, o Nuno foi interrogado pela polícia por causa do irmão – Armando Tabaquinho; deu-lhe para aderir às BR’s e auto-proclamava-se desertor na Gomes da Silva, só saía à noite para ir beber copos no Pote e na Munique – correndo o risco de irmos todos de cana. O Nuno, sempre brincalhão, resolveu responder à bófia, com os olhos fosforescentes e os bolsos cheios de erva para a viagem, que mesmo que soubesse onde estava o irmão não lhes dizia.
Creio ser todo o seu curriculum revolucionário.
Quando finalmente passámos a fronteira a proeza foi elogiadíssima pelo Ruas, que enrolava charros com uma mão e conduzia com a outra, enquanto eu, encolhido no banco de trás do meu velho VW (parecia retirado de uma página do Crumb) e a cabeça apoiada na almofada de erva o ouvia dissertar sobre Vaneigem, Cohen-Bendit, dizendo que Assim falava Zaratustra, e eu acreditei, quem era eu para pô-lo em dúvida?, enquanto o Nuno cofiava o bigode – não o da foto, o real – e o seguia deslumbrado e eu francamente cansado. Foi tal a canseira que nunca mais nos vimos. Foi como veio, retendo dele apenas o zumbido contínuo da palestra ou seminário em que converteu a viagem, quando não dormia e eu conduzia silenciosamente a saborear a pedra; a viagem.
O melhor disfarce do Tó Coelho era a ironia. No Inverno usava um sobretudo apertado até ao pescoço, que lhe dava um inconfundível ar de almotolia, e é dele a autoria da frase que transcrevi lá para trás, quando a erudição começava a rançar e a estragar o bom da pedra: «Eu já disse isto tantas vezes, que também já me posso citar a mim mesmo.» Nunca fomos especialmente próximos, e nunca mais o vi desde que desertei da comunidade, embora o Paulo me fosse dando notícias quando me lembrava de perguntar por ele, obrigando-me a ligar-lhe para explicar a razão do parêntesis na legenda. Morte macaca, contrariando todos os prognósticos que lhe podiam pôr a saúde em dúvida, mas não o fim que não merecia a justiça de lhe utilizar a citação.
Finalmente o Paulo, com uma camisola que comprei ao Tabaquinho e ele adorava vestir quando íamos dar uma volta muito pedrados e punha a cabeça de fora do VW para arejar a juba, enquanto me concentrava ao volante para tentar não amarrotar aquela autêntica página de banda desenhada por entre o trânsito. Conheci-o ainda na Mãe d’Água, onde nasceu e crescia a revista & etc., numa das minhas viagens de contacto – na altura tinha acabado a tropa e fazia de conta em Estremoz – com a grande cidade e os escritores. Estava ansioso por conhecer escritores, pintores, artistas, críticos, chupa-tintas, jornalistas, pantomineiros, etc. Queria ser como eles. Felizmente, como o acesso (aparentemente) era mais fácil pelo & etc., entrei depressa nos eixos. A segunda vez, encontrámo-nos, acidentalmente, na esplanada do Pão de Açúcar, na Alameda, com uma djellaba a cheirar a Tânger e o hálito de um charro afegão que me dispensava as palavras. Depois de tudo o que passámos e fizemos juntos, ele era das poucas pessoas com quem podia estar mais de um ano sem nos vermos ou falarmos, e quando nos encontrávamos, satisfeita a natural verborreia inicial, era possível deixar pousar um silêncio sem que ele tivesse necessidade de tirar a venda kamikaze, nem eu precisasse de sujar o balão em branco.